São Paulo, quinta-feira, 04 de julho de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Pentacampeões

Digamos que houve três etapas míticas na história do futebol, nossa principal contribuição, até agora, à humanidade. Numa primeira etapa, a inventividade do futebol brasileiro mostrou que poderia haver uma dimensão artística no "esporte bretão", tão entediante quanto parcimonioso em tentos, o único esporte em que uma partida pode terminar em 0 x 0.
Essa nossa aptidão "natural" para o futebol é um enigma sociológico cuja resolução se encontra em algum lugar entre a antropometria e a história social, pois não parece mera coincidência que a capoeira e o samba tenham também origem afro-brasileira, o que sugere alguma propensão para a coreografia dos membros inferiores.
Numa segunda etapa, iniciada pelo futebol holandês de 1974, nosso futebol-arte revelou-se obsoleto perante um esquema que compensava a ausência de habilidade "artística" por meio de condicionamento físico e mobilidade tática sem precedentes. O futebol brasileiro entrou em eclipse e abriu espaço a seu congênere, o futebol argentino.
Coutinho e Parreira foram os "intelectuais" que incorporaram os achados da reação defensiva desenvolvida pelo futebol europeu após a sequência 58/62/70. Era necessário conciliar futebol-arte com futebol-força: essa polêmica atravessou duas décadas em nosso ambiente cultural. Telê Santana foi, talvez, o primeiro a demonstrar que isso poderia ser feito.
O grande feito da "família Scolari" foi consolidar a maturidade de nossa supremacia nesse esporte, com a reconciliação ao que tudo indica permanente entre os termos do antigo antagonismo: espontaneidade e disciplina, criação e técnica, talento individual e esforço de equipe. Ora, em termos simbólicos esse feito vai muito além do futebol.
É isso o que explica certa sem-cerimônia quase arrogante dos pentacampeões na cansativa recepção, como se olhassem nos olhos de cada brasileiro para perguntar: "Fizemos a nossa parte, somos os melhores do mundo em nosso ramo. E você, como está no ranking?". A chamada globalização do futebol torna esse efeito ainda mais pungente.
A utopia brasileira sempre foi combinar "sensualidade" com "eficiência". Por que não temos, como país, metade do sucesso que alcançamos no futebol? Reflexos das principais correntes de interesse e pensamento, os candidatos darão diferentes respostas a essa pergunta no segundo semestre, por mais parecidos que se tornem pela reengenharia publicitária.
O candidato do PT dirá que é necessário um choque social que possa modificar dois mecanismos perversos e crônicos no Brasil: a reprodução da desigualdade abissal e da dependência exterior. Admitirá que a conjuntura impõe limites severos à ação política, tentará mostrar-se "responsável", mas dirá que sua eleição marca o começo de uma mudança social pacífica.
O candidato do governo dirá que o caminho dessa mudança passa pela manutenção do rumo, prometendo que sua capacidade gerencial vai agilizar o ritmo e corrigir falhas. O candidato alternativo dirá algo semelhante, oferendo-se como alternativa autêntica. E, ao contrário do que acontece no futebol, o torcedor terá de escolher.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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