São Paulo, terça-feira, 04 de julho de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Não dê esmola, dê futuro

FLORIANO PESARO


Ao comprar produtos de uma criança nas ruas, as pessoas estão contribuindo com o trabalho infantil e a perpetuação da miséria


NO MÊS EM QUE o mundo se mobiliza para discutir as formas de combate ao trabalho infantil, é sintomático existirem ainda crianças sobrevivendo nas ruas das grandes cidades do país. Elas são a ponta do iceberg da tragédia social brasileira. Além do trabalho infantil, exibem as chagas da violência, do abandono, da exploração, do descaso, da omissão e de todos os dramas intrínsecos à miséria humana. A despeito das políticas públicas, do envolvimento de inúmeras organizações não-governamentais, das intervenções alternativas e inovadoras, dos investimentos e de contarmos com uma legislação moderna, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), o fenômeno persiste, principalmente pelo fato de a criança de rua estar intimamente relacionada com a pobreza nos centros urbanos. São Paulo é exemplar para análise.
De acordo com o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social, elaborado pela Fundação Seade, existem cerca de 1,4 milhão de pessoas ou 340 mil famílias em situação de vulnerabilidade social, vivendo na linha ou abaixo da linha da pobreza nas periferias do município, com dificuldade em obter emprego e com acesso precário a serviços básicos de educação, saúde e habitação, entre outros.
Soma-se a essas privações o fato de as famílias serem chefiadas na maioria dos casos por mulheres jovens, com baixa escolaridade e muitos filhos, expostas a riscos diversos, como morte violenta e gravidez precoce.
Filhas desse bolsão de pobreza metropolitano, as 2.100 crianças que vemos pedindo esmola, fazendo malabares e vendendo balas nos faróis migram para as regiões centrais de São Paulo para "trabalhar". Longe de casa e das escolas, estão expostas à violência moral, física e sexual. Na maioria das vezes, o dinheiro arrecadado não fica com elas e pouco com suas famílias. Estimativas revelam que dois terços do que uma criança ganha em um farol (em média R$ 20 por dia) vão parar nas mãos de um aliciador.
Outra pedra no caminho quando o assunto é criança de rua é a ausência de consenso entre as entidades não-governamentais, sociedade civil e as várias instâncias do poder público sobre o objeto e a forma de intervenção a ser adotada. A área é uma arena de disputa, como bem coloca Maria Filomena Gregori em "Viração", livro publicado em 2000, mas que mantém uma atualidade surpreendente.
Ao analisar o período de 1991 a 1995, a autora justificava a falta de diálogo e a pulverização das ações com o momento de transição pelo qual o país passava. O ECA acabara de ser promulgado e as ações na área se apoiavam em uma política social assistencialista.
Daqui a poucos dias, no entanto, o Estatuto completa 16 anos. O que eram consideradas intervenções assistencialistas, por sua vez, já são uma jovem e robusta política pública, que em São Paulo está alicerçada no Programa São Paulo Protege, uma estratégia voltada para a emancipação e inclusão social prioritária das famílias dessas crianças.
Em se tratando de um tema tão complexo, é imperativo que as divergências sejam suprimidas na busca de um consenso em torno da estratégia adotada. Urge trabalharmos em rede, com sinergia e sincronismo, estabelecendo papéis e diretrizes claras, compromissos concretos para a erradicação definitiva do trabalho infantil, evitando superposições de tarefas e desperdício de recursos.
E a população é peça fundamental na resolução desse enredo. As pessoas precisam entender que, ao dar esmola ou comprar produtos de uma criança nas ruas, estão contribuindo com o trabalho infantil, comprometendo o futuro dessa criança, de sua família e de toda a sua comunidade com a perpetuação da miséria.
Não é dando dinheiro que se ajuda uma criança. Muito pelo contrário. O São Paulo Protege retira meninos e meninas das ruas articulando seu ingresso prioritário em programas de educação, principalmente o pós-escola, em parceria com as 350 ONGs conveniadas à prefeitura (são 715 convênios, que consomem R$ 161 milhões por ano) e agentes de proteção social especialmente treinados. Nessa estratégia, em apenas oito meses, 1.817 crianças foram afastadas do trabalho infantil na cidade com a abordagem, acolhimento e reinserção social e familiar.
Muito está sendo feito. Quem quiser contribuir, pode doar ao Fumcad (Fundo Municipal da Criança e do Adolescente) ou diretamente às organizações conveniadas, jamais diretamente nas ruas.
Não dê esmola, dê futuro.

FLORIANO PESARO , 38, sociólogo, é secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, foi secretário nacional do programa Bolsa-Escola, conselheiro do Conselho Nacional de Assistência Social (gestão FHC) e secretário-adjunto da Casa Civil do governo de São Paulo (Alckmin).


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