São Paulo, terça-feira, 04 de julho de 2006

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"Don't cry for me Brasil"

JOÃO CARLOS MARTINS


Comecei a comparar o esforço dos meus músicos com o dos jogadores da seleção brasileira, que pareciam cumprir tabela


EU DUVIDO QUE haja alguém que tenha vibrado e sofrido tanto com a seleção brasileira desde 1950, aos 10 anos de idade, até 2002 quanto eu. O jogo final daquele mundial assisti em Leipzig, pois estava presidindo o Concurso Internacional de Piano J.S.Bach. Se a nossa seleção era vitoriosa eu saía às ruas, aqui ou no exterior, como se a glória fosse minha, ou então sentia vergonha quando éramos derrotados numa Copa do Mundo, tentando me explicar como se o fracasso fosse meu.
Durante todos esses anos, com exceção de duas interrupções por problemas físicos, a minha vida era voltada ao estudo de piano e aos concertos, aqui e no exterior. Como eu dizia, era um vôo solo e introspectivo. Horas e horas a fio junto ao piano, o que certamente me colocava alheio a diversos problemas da nossa sociedade.
Na minha memória guardo momentos inesquecíveis, quando após concertos importantes, ao ver a reação do público, eu pensava "eu sou um brasileiro!". Sempre nas minhas entrevistas eu dizia com orgulho que a minha interpretação da obra de Bach era a visão de uma pessoa do Hemisfério Sul, nascida no Brasil.
Uma vez no Ateneu de Bucareste fiz questão de encerrar o concerto com o Hino Nacional, tal a minha emoção ao reiniciar uma carreira com a mão esquerda, que infelizmente também teve que ser interrompida. O mesmo gesto repeti na China.
Em 2004, a realidade me levou a iniciar uma nova carreira como maestro e formar minhas próprias orquestras Bachiana Filarmônica e Bachiana Jovem, esta com jovens e adolescentes, principalmente da periferia.
Na mesma época, assumi a direção da Faculdade de Música FMU e comecei a enxergar a luta do músico brasileiro. Conheci profissionais e alunos excepcionais e pude analisar as dificuldades dos mesmos, apesar do amor a uma causa cultural e social.
Observei a necessidade do estímulo que a iniciativa privada pode oferecer para essa, eu diria, "batalha cultural" em nosso país, pois sei o quanto a cultura pode promover o Brasil no exterior, mesmo que a maioria dos noticiários internacionais se refira a nós muito mais pelo futebol e pelas desigualdades sociais.
Aí comecei a comparar o esforço dos meus músicos com o dos jogadores da seleção brasileira. Quantas vezes varamos madrugada nos esforçando para uma maior excelência nos nossos resultados, quantas vezes em concertos nos CEUs da periferia de São Paulo os músicos se emocionam ao ver a reação de jovens que jamais assistiram a uma apresentação de música clássica, quantas vezes saímos de madrugada da faculdade tentando aprimorar uma execução...
Para a estréia da Bachiana no "Carnegie Hall", no próximo dia 6 de janeiro, cada músico já está se preparando para mostrar a nossa interpretação da obra de Bach, assim como uma peça de Almeida Prado que trata da preservação da Floresta Amazônica. No coração de cada um está a nossa bandeira.
Por outro lado, observei a atitude da maioria dos nossos jogadores, que simplesmente pareciam cumprir uma tabela e apenas mais um jogo, esquecendo que o brasileiro de todas as classes colocava sua alma e coração nos pés dos atletas, que por sua vez estavam mais interessados em representar as bandeiras de empresas que gastavam o equivalente a todo o orçamento de cidades importantes de nosso país, dinheiro muito superior àquele investido na cultura.
Nosso investimento cultural é pífio em relação ao de outras nações, tanto por parte do governo quanto da iniciativa privada. Vejo conjuntos musicais excelentes implorando por pequenas verbas, que eu diria até vergonhosas, para poder exercer com dignidade seu ofício, e, ao mesmo tempo, um jogador preocupado em usar uma faixa com o símbolo de uma multinacional, sabe-se lá a que preço.
Vejo o nosso capitão trocando a sua faixa com o goleiro, ao ser substituído, e saindo de campo, mesmo com o Brasil perdendo, como se estivesse ganhando tempo para o adversário.
Penso que chegou a hora, não de inverter -já que o futebol é tão importante em nosso país-, mas de abrir os olhos e verificar o que a nossa cultura pode fazer pelo Brasil, aqui e no exterior, inclusive auxiliando na diminuição de nossas desigualdades sociais.
Confesso, até 2002 fui apaixonado e sofri pelo nosso futebol nas Copas, mas hoje gostaria de ver o Parreira e seus jogadores terem a coragem de cantar "Don't cry for me Brasil".

JOÃO CARLOS MARTINS , 66, maestro, regente titular da Bachiana Filarmônica e diretor da Faculdade de Música da FMU.


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