São Paulo, quarta-feira, 04 de julho de 2007

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Farinha pouca, meu pirão primeiro

LUCAS PACHECO


O que está por trás da "Lei Crivella" é muito mais que uma ameaça à produção cultural: é a mistificação, o engodo e a má-fé


ESTÁ PARA ser debatido no Senado o projeto do senador e pastor evangélico Marcelo Crivella (PRB-RJ), um dos fundadores da Igreja Universal do Reino de Deus, que contempla a construção e a reforma de templos, bem como o pagamento de religiosos, com a renúncia fiscal de empresas -ou seja, abatimento no Imposto de Renda.
A proposta abre uma guerra fiscal com os representantes das artes e da cultura brasileira, pois o mecanismo para tanto tem como fundamento a Lei Rouanet, criada em 1986 e aprimorada ao longo dos anos, que, por meio do Pronac (Programa Nacional de Apoio à Cultura), tirou da lama a produção cultural do país.
Mal ou bem, essa lei funciona e faz acontecer na cultura brasileira. É triste ver artistas e produtores da cena brasileira passando o chapéu por várias empresas para conseguir realizar peças de teatro, filmes, editar livros, gravar discos e promover eventos culturais. Mas, sem isso, estariam quase todos na rua da amargura e do miserê.
De acordo com dados do IBGE e do Ministério da Cultura, existem hoje no Brasil perto de 290 mil empresas culturais, que são responsáveis por uma massa salarial acima de R$ 18 bilhões. A receita líquida que as atividades culturais movimentam beira os R$ 170 bilhões anuais, o que leva a cultura ao quarto lugar como item de consumo do brasileiro, superando os gastos com educação e abaixo só de habitação, alimentação e transporte.
Desde a criação da Lei Rouanet, a produção fonográfica de artistas brasileiros cresceu mais de 66%, nosso cinema ressurgiu das cinzas e, hoje, mais de 300 filmes estão em andamento, entre o processo de captação de recursos, a produção e a exibição. Enquanto isso, o "market share" de público espectador de produções nacionais subiu de 7% para quase 22%. A captação de recursos para a realização de atividades culturais está perto de R$ 1,5 bilhão por ano.
Esses são alguns indicadores ainda modestos se comparados aos de outros países da Europa e aos dos Estados Unidos, mas que, sem a lei de incentivo, jamais seriam alcançados. Claro que o cenário não é totalmente perfeito. Existe muito lixo cultural sendo produzido por aí, com o lobby mau de alguns produtores, de um lado, e a prestação de contas fraudulenta, de outro, mas experimentamos um grande avanço que não admite retrocesso -a não ser que imaginemos cair em uma política cultural ao estilo chavista.
Dessa forma, e por todos os motivos citados, soa como disparate e cheira mal a proposta do pastor Crivella, que pressupõe empresas abatendo do seu, do meu, do nosso dinheiro, não importando nossas crenças religiosas, verbas ainda mais polpudas das renúncias fiscais que já têm essas igrejas, para patrocinar aventuras religiosas universais.
Será que já não chega o que esses religiosos arrecadam diariamente dos fiéis nos gigantescos e faustosos templos mundo afora?
Essas organizações religiosas originadas no Brasil ultrapassaram fronteiras e, em países da África, em Angola, por exemplo, já arrebanham mais adeptos do que a Igreja Católica. Você tropeça com um templo em cada esquina, e existem milhares de pastores pregando e convencendo incautos a contribuir com dinheiro em troca da redenção.
O que está por trás da "Lei Crivella" é muito mais do que uma ameaça à nossa produção cultural: é a mistificação, o engodo e a má-fé. Religiosos conscientes e bem-intencionados têm mostrado indignação com tal propositura, que demonstra, mais uma vez em nossa política, como a esperteza, apresentada em forma de projeto de lei, é colocada em debate no Congresso, tudo empacotado, maquiado de forma angelical.
O senador-pastor diz que sua idéia não irá prejudicar a cultura no país, já que o limite de renúncia fiscal estabelecido pela Lei Rouanet -4% do total do Imposto de Renda devido- nunca foi alcançado. Uma defesa frágil e um argumento pífio de quem não está nem aí para pessoas sérias, como exemplos mais ilustres Paulo Autran e Fernanda Montenegro, que, depois de representar por décadas e décadas a nossa cultura, ainda hoje têm que correr atrás de incentivos fiscais para realizar seus produtos culturais.
Senador Crivella, volte para os templos com seus pastores, use o gordo dízimo -arrecadado da gente simples brasileira- com bom senso e deixe nossa sofrida cultura na paz celestial dos incentivos fiscais. É uma questão de sobrevivência.

LUCAS PACHECO, 54, é jornalista, publicitário e consultor de marketing político. Já atuou como produtor e diretor de cinema e voltou, após 27 anos, a dirigir filmes.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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