São Paulo, quarta-feira, 04 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A cúpula sequestrada

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

Apesar de no momento em que escrevo não serem conhecidos os textos finais que comporão o "plano de ação" aprovado na Cúpula da ONU sobre o Desenvolvimento Sustentável, que acaba de se realizar, em Johannesburgo, não é difícil prever que eles mal conseguirão disfarçar a realidade: a cúpula foi um fracasso.
Em pouco mais de um ano, fracassaram duas reuniões magnas da ONU na África. A outra foi a Cúpula Contra o Racismo e a Discriminação, realizada em Durban, em 2001. Isso significa que a África, tão fustigada pela globalização de há séculos, como pela globalização de agora, continua sendo um continente expropriado da esperança e que serve de metáfora cruel das exclusões e injustiças que caracterizam o nosso tempo.
O fracasso da Cúpula de Johannesburgo foi um fracasso anunciado. Após o colapso das reuniões preparatórias, não havia muito a esperar. Há, pois, que analisar o significado do fracasso e tirar dele as devidas ilações. A Cúpula da Terra, realizada no Rio há dez anos, foi a dos bons propósitos: as convenções sobre as mudanças climáticas, a diversidade biológica, o combate à desertificação; os 27 princípios sobre o desenvolvimento sustentável, conhecidos como a Declaração do Rio; a Agenda 21.
Como os dez anos que se seguiram foram a quase sistemática negação desses propósitos, esperava-se que a Cúpula de Johannesburgo fosse a dos compromissos vinculativos, dos objetivos concretos e dos prazos definidos, para finalmente serem cumpridas as promessas feitas. Em vez disso, a reunião foi dominada pela aversão a prazos e objetivos e pela preferência por compromissos voluntariamente assumidos.
Em segundo lugar, a Cúpula do Rio tinha defendido um conceito amplo de desenvolvimento sustentável, que não só punha em causa o modelo de desenvolvimento econômico em curso, na medida em que este não garante a renovação dos recursos, como também punha limites ao mercado enquanto critério de ação social e decisão política.
Nesse domínio, a Cúpula de Johannesburgo não só não avançou, como significou um retrocesso. A novidade desta conferência foi a grande presença das empresas multinacionais, dos seus "think tanks" e dos seus lobbies. Mas o retrocesso não residiu nessa presença em si mesma; residiu antes na força da mensagem que ela transmitiu.


Os Estados reformularam o seu papel no desenvolvimento, diminuindo a sua intervenção direta


A mensagem é esta, e é perturbadora: o mercado é a única solução para os problemas do desenvolvimento sustentável; a única solidariedade possível é a que é voluntariamente promovida pelo mercado; não há incompatibilidade entre desenvolvimento sustentável e crescimento econômico, pelo contrário, são gêmeos. Prova disso: se os milhões de doentes de Aids não podem comprar os medicamentos de marca, a solução está no financiamento internacional da sua venda, e não nos genéricos.
Em dez anos as empresas multinacionais cooptaram o discurso ambiental da participação e da sustentabilidade, aprofundaram as suas alianças com os Estados dos países ricos e com a própria ONU e reduziram as soluções possíveis. Em suma, sequestraram os objetivos do desenvolvimento sustentável.
As principais ilações a tirar desse fracasso são as seguintes:
Primeiro, a globalização neoliberal está mais forte do que nunca. A guerra contra o terrorismo foi o seu mais recente reforço e os EUA estão usando essa guerra para consolidar uma hegemonia que, em termos estritamente econômicos, estava sendo questionada.
Em segundo lugar, a União Européia está enfraquecida e dividida, por várias razões: pelo impacto da guerra contra o terrorismo, pela continuada influência dos agricultores ricos, pela pressão do capitalismo europeu para que a UE deixe aos EUA o "trabalho sujo" do imperialismo mais grosseiro, mas não deixe de se aproveitar dele.
Em terceiro lugar, os Estados reformularam o seu papel no desenvolvimento, diminuindo a sua intervenção direta e se transformando em árbitros entre as empresas multinacionais e a sociedade civil organizada. Tal como aconteceu antes, em nível nacional, quando o Estado pretendeu ser o árbitro entre o capital e o trabalho, esta nova arbitragem é estruturalmente enviesada a favor das empresas multinacionais.
Finalmente, em quarto lugar, os países pobres estão divididos -tanto os Estados como as ONGs-, e foi divididos que se apresentaram em Johannesburgo. Apesar de ser a própria ONU quem declara que, se todo o mundo tivesse o mesmo nível e o mesmo tipo de desenvolvimento dos países ricos, seriam necessários dois planetas e meio para garantir a sustentabilidade, muitos países e ONGs do Sul acreditam que este modelo um dia os beneficiará.
A divisão é notória e particularmente deletéria nas seguintes questões: a inversão das transferências líquidas do Sul para o Norte, propiciada pelo modelo econômico em curso; democratização das instituições financeiras multilaterais; reforma e reforço da ONU; reforma da Organização Mundial do Comércio segundo o princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas e a centralidade dos acordos ambientais multilaterais; a revisão urgente dos regimes de direitos de propriedade intelectual; a reforma do sistema financeiro global; a centralidade da reforma agrária e do acesso à terra, das políticas de saúde e de educação; a centralidade da sustentabilidade, quando metade dos postos de trabalho do mundo estão na agricultura, nas florestas e nas pescas.
A divisão dos países do Sul, quer dos Estados, quer das ONGs e movimentos sociais, tem de ser urgentemente atenuada através de:
1. Aumento da participação democrática, tanto no interior dos Estados como no das ONGs e movimentos sociais e;
2. Articulações e alianças transnacionais com objetivos concretos.
A meu ver, a importância do próximo Fórum Social Mundial, que se realizará em Porto Alegre no final de janeiro de 2003, reside precisamente na sua capacidade para identificar as diferenças e procurar pontes entre elas. E, depois do que se passou em Johannesburgo, a razão da esperança para o fórum está no fato de ser a única reunião internacional sobre temas da globalização em que as empresas multinacionais não têm poder para estabelecer a agenda e definir os critérios de ação.


Boaventura de Sousa Santos, 61, sociólogo, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).



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