São Paulo, segunda-feira, 04 de setembro de 2006

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JOÃO SAYAD

O avarento

A GENTE se acostuma com tudo. Libaneses, com os bombardeios, iraquianos, com carros-bomba, paulistanos, com assaltos. Com o tempo certas coisas viram naturais e não sabemos mais o que são. O dinheiro é uma dessas coisas.
Bote a mão no bolso, tire uma nota de dez reais e olhe bem. O que é esse pedaço de papel? Você também guardou dinheiro no banco, que não está mais lá, pois o banco emprestou o seu, que é igual ao de qualquer um. Dinheiro é impessoal e anônimo. Dinheiro é secreto. Não se pergunta quanto dinheiro o outro tem. Quem sabe do seu dinheiro, no banco ou na Receita Federal, não pode revelar. Só a Justiça quebra o sigilo.
Sem dinheiro, não haveria roubo nem prostituição nem liberdade. É o dinheiro que permite que você fale mal do governo e fuja para o exílio. Dinheiro é invisível, portátil, fungível e líquido-não é preciso negociar quanto vale um real (vale um real). Dinheiro é o sentido último do mundo.
Hoje parece natural. Nem sempre foi assim. No Teatro Cultura Artística, Paulo Autran é o Avarento de Molière, peça de 1688, quando começava o tempo novo do dinheiro e acabava o tempo das religiões. Os atores usam roupas da época, empoeiradas como se tivessem saído das caixas que compõem o cenário. Parecem figuras de museu de cera com gestos e movimentos de pantomima. A encenação acentua o ar do passado para tornar estranho e dissecar o presente.
Na comédia confrontam-se duas éticas. O avarento tem medo que alguém saiba que é rico (o sigilo) e segue radicalmente a ética de Benjamin Franklin -um tostão poupado hoje vale um bilhão daqui a alguns anos.
Os filhos do Avarento querem se casar por amor, conquista da liberdade individual quando os casamentos eram determinados pelas conveniências. As duas éticas se chocam: a ética do dinheiro, ridicularizada, e a liberdade individual, possível exatamente por causa do dinheiro.
Não é possível conciliar o fundamentalismo do avarento com a paixão dos casais. "Dinheiro, dinheiro, amigos à parte." Se dinheiro e amizade fossem compatíveis não haveria dinheiro. Nem há conciliação entre a ética dos gregos e a cristã. Nem entre o princípio cristão do Bolsa Família e a ética do dinheiro -não se dá dinheiro (dinheiro não dá em árvores).
O Banco Central reduziu os juros em 0,5%. Foi uma surpresa, pois estamos acostumados com o fundamentalismo do Banco. O CDE prevê que em 2008 a taxa de juros real do Brasil ainda será de 8%! Continuaria sendo a maior do mundo. Nem o avarento imaginaria uma coisa dessas. A gente se acostuma com tudo.


jsayad@attglobal.net

JOÃO SAYAD
escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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