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JOÃO SAYAD
O avarento
A GENTE se acostuma com
tudo. Libaneses, com os
bombardeios, iraquianos,
com carros-bomba, paulistanos,
com assaltos. Com o tempo certas
coisas viram naturais e não sabemos mais o que são. O dinheiro é
uma dessas coisas.
Bote a mão no bolso, tire uma
nota de dez reais e olhe bem. O que
é esse pedaço de papel? Você também guardou dinheiro no banco,
que não está mais lá, pois o banco
emprestou o seu, que é igual ao de
qualquer um. Dinheiro é impessoal
e anônimo. Dinheiro é secreto. Não
se pergunta quanto dinheiro o outro tem. Quem sabe do seu dinheiro, no banco ou na Receita Federal,
não pode revelar. Só a Justiça quebra o sigilo.
Sem dinheiro, não haveria roubo
nem prostituição nem liberdade. É
o dinheiro que permite que você fale mal do governo e fuja para o exílio. Dinheiro é invisível, portátil,
fungível e líquido-não é preciso
negociar quanto vale um real (vale
um real). Dinheiro é o sentido último do mundo.
Hoje parece natural. Nem sempre foi assim. No Teatro Cultura
Artística, Paulo Autran é o Avarento de Molière, peça de 1688, quando começava o tempo novo do dinheiro e acabava o tempo das religiões. Os atores usam roupas da
época, empoeiradas como se tivessem saído das caixas que compõem
o cenário. Parecem figuras de museu de cera com gestos e movimentos de pantomima. A encenação
acentua o ar do passado para tornar estranho e dissecar o presente.
Na comédia confrontam-se duas
éticas. O avarento tem medo que
alguém saiba que é rico (o sigilo) e
segue radicalmente a ética de Benjamin Franklin -um tostão poupado hoje vale um bilhão daqui a alguns anos.
Os filhos do Avarento querem se
casar por amor, conquista da liberdade individual quando os casamentos eram determinados pelas
conveniências. As duas éticas se
chocam: a ética do dinheiro, ridicularizada, e a liberdade individual,
possível exatamente por causa do
dinheiro.
Não é possível conciliar o fundamentalismo do avarento com a paixão dos casais. "Dinheiro, dinheiro,
amigos à parte." Se dinheiro e amizade fossem compatíveis não haveria dinheiro. Nem há conciliação
entre a ética dos gregos e a cristã.
Nem entre o princípio cristão do
Bolsa Família e a ética do dinheiro
-não se dá dinheiro (dinheiro não
dá em árvores).
O Banco Central reduziu os juros
em 0,5%. Foi uma surpresa, pois
estamos acostumados com o fundamentalismo do Banco. O CDE
prevê que em 2008 a taxa de juros
real do Brasil ainda será de 8%!
Continuaria sendo a maior do
mundo. Nem o avarento imaginaria uma coisa dessas. A gente se
acostuma com tudo.
jsayad@attglobal.net
JOÃO SAYAD escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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