São Paulo, segunda-feira, 04 de setembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Ditadura constituinte

PAULO BONAVIDES

A convocação de uma constituinte exclusiva nas circunstâncias presentes é crime contra a Constituição e contra o povo brasileiro

A CONVOCAÇÃO de uma constituinte exclusiva (proposta semanas atrás por Lula e defendida por alguns) nas circunstâncias presentes é, a meu ver, crime contra a Constituição e as instituições, contra o povo brasileiro e a nação.
Diversamente do que pensam e dizem seus propugnadores, trará, portanto, mais retrocesso, mais turbulência, mais ingovernabilidade, mais sofrimentos ao povo, mais atraso à sua formação política, mais instabilidade ao regime, mais descrença nos valores constitucionais. Tudo por afetar a segurança jurídica, comprometer o funcionamento normal da República, quebrantar a Constituição e enfraquecer a ordem federativa.
Os grandes e pequenos colégios de soberania que forem convocados para promulgar Constituições e fazer emendas constitucionais poderão se tornar instrumentos de um novo gênero de ditadura: a ditadura constituinte, bem pior que a ditadura constitucional das medidas provisórias, que há muito mina e dilui a função legislativa do Congresso, bem como a autoridade da lei e da Constituição.
Pior, pois guarda aparência de legitimidade quando, em rigor, frauda a democracia, por instituir o mais lesivo e mortal dos sistemas de força que a dissimulação política pôde, de último, conceber. Rumo a essa ditadura marchamos, com a perda da fé nos homens públicos, com o aviltamento do Congresso, com o naufrágio do país constitucional.
Estamos, assim, às vésperas de ver a crise constitucional dos Poderes constituídos -o Legislativo, o Executivo e o Judiciário- se transformar rapidamente em crise constituinte.
Das crises políticas, não há nenhuma tão grave quanto essa que o Legislativo e o Executivo ameaçam instaurar entre nós. Grave porque, além de dissolver a ordem constitucional, dissolve também as instituições e não arranca do Congresso as raízes apodrecidas da representação.
Não configura ela apenas a enfermidade da Constituição -como acontece quando se trata unicamente de crise constitucional, cuja solução se dá por emendas à Carta. Representa sua morte.
A crise do poder constituinte tem sido, aliás, a crise de todas as nossas Constituições, a geratriz de todos os golpes de Estado, a nascente de todas as convulsões imperiais e republicanas do passado. Se mergulharmos nessas águas de tempestade, não haverá por onde alcançar depois a normalidade institucional.
As constituintes propostas -não importa se exclusivas, plenas ou restritas- destroçam a Constituição e o Estado de Direito da mesma forma que os plebiscitos de Hitler e os senatus-consulto de Napoleão destruíam, respectivamente, a república na Alemanha de Weimar e na França pós-Revolução Francesa.
Da maneira como se busca convocá-las e fazê-las funcionar, aniquilando o artigo 60 da Constituição, com a obliqüidade do golpe de Estado (alteração do quórum constitucional), elas já não consubstanciam o poder do povo, senão o dos oligarcas e plutocratas da corrupção.
As chagas sociais no organismo da nação descrevem a falência da educação e da saúde, o desemprego, a miséria urbana, a intranqüilidade pública, a opressão da carga tributária e, por derradeiro, a politização do crime organizado. A constituinte exclusiva e as miniconstituintes projetadas confinam com o autoritarismo e a usurpação.
Conforme já assinalamos, tais assembléias, nesta conjuntura, podem nos transportar, em queda vertiginosa, do patamar da ditadura constitucional para o despenhadeiro da ditadura constituinte.
Contudo, a resposta à crise e à desintegração, ao caos e ao medo, se acha formulada nos artigos 1º, parágrafo único, e 14, incisos I, II e III, da Constituição. O primeiro consente estabelecer a democracia direta, mais legítima que a democracia representativa. O segundo enuncia os veículos que concretizam semelhante modelo democrático: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.
Quando a cidadania, armada das técnicas plebiscitárias da Lei Maior, chegar verdadeiramente ao poder, a crise constituinte se extinguirá. E o Brasil, em toda a plenitude, será uma República livre, democrática e constitucional. Em suma, o quadro que ora se desenha é este: com as medidas provisórias, temos a ditadura constitucional, ou seja, a ditadura legislativa das inconstitucionalidades do Poder Executivo; com as constituintes, o fantasma da ditadura constituinte permanente.
Mas, com a democracia participativa, sem dúvida, a melhor versão da democracia direta, não teremos nem crise constitucional, nem crise constituinte, nem ditadura.


PAULO BONAVIDES, 81, é doutor "honoris causa" da Universidade de Lisboa, presidente emérito do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, membro do Comitê de Iniciativa que fundou em Belgrado a Associação Internacional de Direito Constitucional e fundador e diretor da "Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais".

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