|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Ditadura constituinte
PAULO BONAVIDES
A convocação de uma constituinte exclusiva nas circunstâncias presentes é crime contra a Constituição e contra o povo brasileiro
A CONVOCAÇÃO de uma constituinte exclusiva (proposta semanas atrás por Lula e defendida por alguns) nas circunstâncias
presentes é, a meu ver, crime contra a
Constituição e as instituições, contra
o povo brasileiro e a nação.
Diversamente do que pensam e dizem seus propugnadores, trará, portanto, mais retrocesso, mais turbulência, mais ingovernabilidade, mais
sofrimentos ao povo, mais atraso à
sua formação política, mais instabilidade ao regime, mais descrença nos
valores constitucionais. Tudo por afetar a segurança jurídica, comprometer o funcionamento normal da República, quebrantar a Constituição e
enfraquecer a ordem federativa.
Os grandes e pequenos colégios de
soberania que forem convocados para
promulgar Constituições e fazer
emendas constitucionais poderão se
tornar instrumentos de um novo gênero de ditadura: a ditadura constituinte, bem pior que a ditadura constitucional das medidas provisórias,
que há muito mina e dilui a função legislativa do Congresso, bem como a
autoridade da lei e da Constituição.
Pior, pois guarda aparência de legitimidade quando, em rigor, frauda a
democracia, por instituir o mais lesivo e mortal dos sistemas de força que
a dissimulação política pôde, de último, conceber. Rumo a essa ditadura
marchamos, com a perda da fé nos
homens públicos, com o aviltamento
do Congresso, com o naufrágio do
país constitucional.
Estamos, assim, às vésperas de ver
a crise constitucional dos Poderes
constituídos -o Legislativo, o Executivo e o Judiciário- se transformar
rapidamente em crise constituinte.
Das crises políticas, não há nenhuma
tão grave quanto essa que o Legislativo e o Executivo ameaçam instaurar
entre nós. Grave porque, além de dissolver a ordem constitucional, dissolve também as instituições e não arranca do Congresso as raízes apodrecidas da representação.
Não configura ela apenas a enfermidade da Constituição -como
acontece quando se trata unicamente
de crise constitucional, cuja solução
se dá por emendas à Carta. Representa sua morte.
A crise do poder constituinte tem
sido, aliás, a crise de todas as nossas
Constituições, a geratriz de todos os
golpes de Estado, a nascente de todas
as convulsões imperiais e republicanas do passado. Se mergulharmos
nessas águas de tempestade, não haverá por onde alcançar depois a normalidade institucional.
As constituintes propostas -não
importa se exclusivas, plenas ou restritas- destroçam a Constituição e o
Estado de Direito da mesma forma
que os plebiscitos de Hitler e os senatus-consulto de Napoleão destruíam,
respectivamente, a república na Alemanha de Weimar e na França pós-Revolução Francesa.
Da maneira como se busca convocá-las e fazê-las funcionar, aniquilando o artigo 60 da Constituição, com a
obliqüidade do golpe de Estado (alteração do quórum constitucional), elas
já não consubstanciam o poder do povo, senão o dos oligarcas e plutocratas
da corrupção.
As chagas sociais no organismo da
nação descrevem a falência da educação e da saúde, o desemprego, a miséria urbana, a intranqüilidade pública,
a opressão da carga tributária e, por
derradeiro, a politização do crime organizado.
A constituinte exclusiva e as miniconstituintes projetadas confinam
com o autoritarismo e a usurpação.
Conforme já assinalamos, tais assembléias, nesta conjuntura, podem nos
transportar, em queda vertiginosa, do
patamar da ditadura constitucional
para o despenhadeiro da ditadura
constituinte.
Contudo, a resposta à crise e à desintegração, ao caos e ao medo, se
acha formulada nos artigos 1º, parágrafo único, e 14, incisos I, II e III, da
Constituição. O primeiro consente
estabelecer a democracia direta, mais
legítima que a democracia representativa. O segundo enuncia os veículos
que concretizam semelhante modelo
democrático: o plebiscito, o referendo
e a iniciativa popular.
Quando a cidadania, armada das
técnicas plebiscitárias da Lei Maior,
chegar verdadeiramente ao poder, a
crise constituinte se extinguirá. E o
Brasil, em toda a plenitude, será uma
República livre, democrática e constitucional. Em suma, o quadro que ora
se desenha é este: com as medidas
provisórias, temos a ditadura constitucional, ou seja, a ditadura legislativa
das inconstitucionalidades do Poder
Executivo; com as constituintes, o
fantasma da ditadura constituinte
permanente.
Mas, com a democracia participativa, sem dúvida, a melhor versão da
democracia direta, não teremos nem
crise constitucional, nem crise constituinte, nem ditadura.
PAULO BONAVIDES, 81, é doutor "honoris causa" da Universidade de Lisboa, presidente emérito do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, membro do Comitê de Iniciativa que fundou em Belgrado a Associação Internacional de Direito Constitucional e fundador e diretor da
"Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais".
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Arnaldo Niskier: A hora das pedagogias variadas
Índice
|