São Paulo, terça-feira, 04 de outubro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A crise política e o coronelismo

MARCO ANTONIO VILLA

A República vive a crise política mais grave dos últimos 40 anos. Se a crise tem múltiplas facetas, uma delas se deve à permanência no Congresso Nacional do lobby coronelístico. O poder dos oligarcas mantém a República "sub judice". Levou à formação de uma estrutura estatal petrificada, imune às mudanças, imobilizando os governos e fraudando a vontade dos eleitores. Como comandam politicamente boa parte do Congresso Nacional, entra governo, sai governo, e os oligarcas continuam dando as cartas.


Se, na esfera federal, o clã Sarney faz o papel de defensor da democracia, na província exerce o poder total, avassalador


Um caso exemplar de oligarquia com destacada presença nacional é o da família Sarney, no Estado do Maranhão. Neste mês, completam-se 40 anos da eleição de José Sarney para o governo estadual. O jovem governador, então com 35 anos de idade, representava a modernidade; contudo acabou criando uma máquina política tão eficaz que permitiu se manter por quatro decênios no poder do seu Estado -no sentido mais lato da expressão. Desde então, nenhum governador foi eleito sem que tivesse o "nihil obstat" de José Ribamar Costa. E se, no exercício do cargo, o governador eleito rompe com o padrinho, na próxima eleição a família Sarney retoma o controle político.
Domínio tão longevo é caso único na história brasileira. Diversamente de outros oligarcas, os Sarneys são politicamente plurais. O pai é peemedebista, a filha é pefelista e o filho é verde. Se os filhos são eleitos pelo Maranhão, o pai é representante do Amapá, apesar de não ter domicílio naquele Estado. Se, na esfera federal, o clã representa o papel de defensor das instituições democráticas, na província exerce o poder total, avassalador, sem ceder o menor espaço à oposição, no estilo dos mandões locais. Na definição de Euclides da Cunha, são "os senhores do baraço e cutelo".
O historiador francês Lucien Febvre escreveu o clássico "O Problema da Descrença no Século 16: a Religião de Rabelais". Analisou cuidadosamente o domínio ideológico da Igreja Católica na Europa Ocidental: "O nascimento, a morte. Entre esses dois limites, tudo o que o homem realiza, vivendo normalmente, fica com a marca da religião". Se Febvre vivesse no Maranhão, substituiria a religião pela família Sarney.
O maranhense, desde o nascimento, toma conhecimento da existência deles. Em São Luís, a capital, há a maternidade Marly Sarney. Para residir, pode escolher os bairros Sarney, Roseana Sarney, Dona Kiola (mãe de Sarney) ou Sarney Filho. Quando for entrar na escola, pode escolher os colégios Roseana Sarney, Marly Sarney, José Sarney, Sarney Neto ou Fernando Sarney. Para realizar um trabalho escolar, irá procurar a biblioteca José Sarney e, se quiser alguma informação sobre as contas públicas, pode se dirigir à sede do Tribunal de Contas Roseana Sarney Murad. Nas férias, caso queira conhecer outra cidade do Estado, pode se encaminhar à rodoviária Kiola Sarney, seguindo, é claro, pela avenida José Sarney. Ao tomar um ônibus para sair da bela ilha de São Luís, tem de atravessar a ponte José Sarney.
Ele pode visitar, no interior do Estado, o município de Presidente Sarney, de pouco mais de 13 mil habitantes, segundo o IBGE. A cidade é um bom e triste exemplo do domínio oligárquico: 5% dos domicílios têm esgoto sanitário e 0,6%, água encanada; 38% dos habitantes acima de 15 anos são analfabetos (no Brasil, são 13%). O rendimento médio da população é de R$ 159. No ranking do IDH dos municípios brasileiros, a cidade está em 5.268º lugar.
Nestes 40 anos, o Maranhão, que já era um Estado pobre em 1965, transformou-se na vanguarda do atraso. Dos Estados brasileiros, é o que tem os piores indicadores sociais. Vivem abaixo da linha da pobreza dois terços da população. Todavia, se os recursos são escassos para a educação, saúde ou o saneamento básico, são fartos quando pagam obras não realizadas, como a estrada ligando os municípios de Arame a Paulo Ramos. Os 133 quilômetros nunca saíram do papel, mas o pagamento foi efetuado. As "construtoras" receberam US$ 33 milhões, apesar dos insistentes protestos da oposição local. Com certeza, a estrada mereceria um romance que poderia ser escrito por algum acadêmico local, seguindo o realismo fantástico de Gabriel Garcia Márquez.
Romper o poder coronelístico por dentro, ou seja, na própria província, é tarefa quase impossível. Os coronéis controlam o Estado e seus braços repressivos. As apurações das eleições são, no mínimo, duvidosas. Apelar para o Poder Judiciário? Parentes dominam a Justiça. Optar pelos meios de comunicação? No Maranhão, os Sarneys têm a concessão -direta ou indireta- de mais de duas dúzias de emissoras de rádio e TV, além de vários jornais.
A única saída é destruir a fonte do seu poder: as relações privilegiadas que o clã mantém com a União. É de lá que emanam os recursos e o poder que permitem segregar da cidadania milhões de brasileiros. O fim do coronelismo é uma espécie de etapa necessária da nossa revolução burguesa, pois poderemos ter um Congresso Nacional mais representativo e relações efetivamente republicanas entre o governo da União e os Estados federados.

Marco Antonio Villa, 49, é professor de história da Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor de, entre outras obras, "Vida e Morte no Sertão: História das Secas no Nordeste nos Séculos 19 e 20" (Ática).


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