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São Paulo, terça-feira, 04 de novembro de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Golpe de Estado permanente

Já se consolidou na minoria relativamente mais informada do país a convicção de que as políticas de governo praticadas pelo PT e pelo PSDB se exaurem num mesmo projeto. Esse projeto se define por dois traços: modelo de desenvolvimento que prioriza as exigências da confiança financeira, mesmo quando em prejuízo da economia real, e esforço para atenuar a desigualdade e a miséria por meio de "redes de proteção social" -políticas sociais compensatórias. Nós, que nos opomos a uma política marcada por essas diretrizes e que propomos outro rumo, ainda não conseguimos fazer com que nossa proposta viva na imaginação popular e se faça representar por uma grande força política.
O programa compartilhado por petistas e tucanos tem terceira parte, menos visível e ainda mais danosa do que as outras duas. A suposta modernidade que ele oferece ao Brasil repousa sobre o que há de mais atrasado entre nós: a perpetuação e a radicalização de práticas que corrompem as instituições republicanas e minam o império do direito. A população não quer saber disso. Quer saber de emprego e de segurança, de saúde e de educação. Em vão: se não reagirmos ao envenenamento da vida republicana, não alcançaremos o que mais almejamos. Continuaremos a ter pacificação e mentira em lugar de direito e mudança.
Das heranças malditas que o governo atual herdou do anterior, a mais maldita é conjunto de práticas liberticidas que o governo de hoje trata de agravar sem que nenhuma força poderosa se levante para combatê-lo. Em primeiro lugar, cooptação de partidos políticos, manobrados à base de fisiologismo devastador. Em segundo lugar, multiplicação de tratos casuísticos com o grande capital. Entendimento discreto com empresário e financiamento de empresário para partido são considerados legítimos desde que o dinheiro não vá para o bolso de pessoa física. Em terceiro lugar, compra da complacência de boa parte da mídia mais influente, que, quebrada, desfrutável e desfrutada, vive seu momento mais ignominioso em toda nossa história nacional. Em quarto lugar, fortalecimento de armas de intimidação, como o grampeamento telefônico, que se propõe praticar sem a já fraca supervisão judicial.
Queremos o golpe de Estado permanente instalado no coração de uma democracia de arremedo? Queremos ser coniventes no deboche generalizado a que se ameaça reduzir nossa vida pública? Queremos ser crianças manejadas por arranjos plutocráticos ou cidadãos libertados e engrandecidos pelo desfazimento dos acertos entre o poder e o dinheiro?
A realidade indica qual o primeiro passo: pôr a mão na ferida. As privatizações e os negócios que se constituíram sob sua sombra fornecem o fio que levará dos desvios da época anterior aos desvios da época atual. Basta seguir esse fio, na polêmica pública, no jornalismo investigativo e na cobrança judicial, para expor a podridão antinacional, anti-social e anti-republicana sobre a qual repousa o projeto que estava e que continua no poder -o projeto da pílula da rendição econômica, dourada (porém pouco) pelo açúcar das políticas sociais compensatórias.
De tudo o que precisa o país, o de que ele mais precisa hoje é coragem cívica, a coragem que diz: começamos com quase nada, mas agora não esmoreceremos até ver o Brasil acordado. Até ver removidos do poder os que traíram, perverteram e amesquinharam, por um prato de lentilhas e por falta de imaginação, a República.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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