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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Golpe de Estado permanente
Já se consolidou na minoria relativamente mais informada do
país a convicção de que as políticas de
governo praticadas pelo PT e pelo
PSDB se exaurem num mesmo projeto. Esse projeto se define por dois traços: modelo de desenvolvimento que
prioriza as exigências da confiança financeira, mesmo quando em prejuízo
da economia real, e esforço para atenuar a desigualdade e a miséria por
meio de "redes de proteção social"
-políticas sociais compensatórias.
Nós, que nos opomos a uma política
marcada por essas diretrizes e que
propomos outro rumo, ainda não
conseguimos fazer com que nossa
proposta viva na imaginação popular
e se faça representar por uma grande
força política.
O programa compartilhado por petistas e tucanos tem terceira parte, menos visível e ainda mais danosa do que
as outras duas. A suposta modernidade que ele oferece ao Brasil repousa
sobre o que há de mais atrasado entre
nós: a perpetuação e a radicalização de
práticas que corrompem as instituições republicanas e minam o império
do direito. A população não quer saber disso. Quer saber de emprego e de
segurança, de saúde e de educação.
Em vão: se não reagirmos ao envenenamento da vida republicana, não alcançaremos o que mais almejamos.
Continuaremos a ter pacificação e
mentira em lugar de direito e mudança.
Das heranças malditas que o governo atual herdou do anterior, a mais
maldita é conjunto de práticas liberticidas que o governo de hoje trata de
agravar sem que nenhuma força poderosa se levante para combatê-lo. Em
primeiro lugar, cooptação de partidos
políticos, manobrados à base de fisiologismo devastador. Em segundo lugar, multiplicação de tratos casuísticos
com o grande capital. Entendimento
discreto com empresário e financiamento de empresário para partido são
considerados legítimos desde que o
dinheiro não vá para o bolso de pessoa
física. Em terceiro lugar, compra da
complacência de boa parte da mídia
mais influente, que, quebrada, desfrutável e desfrutada, vive seu momento
mais ignominioso em toda nossa história nacional. Em quarto lugar, fortalecimento de armas de intimidação,
como o grampeamento telefônico,
que se propõe praticar sem a já fraca
supervisão judicial.
Queremos o golpe de Estado permanente instalado no coração de uma
democracia de arremedo? Queremos
ser coniventes no deboche generalizado a que se ameaça reduzir nossa vida
pública? Queremos ser crianças manejadas por arranjos plutocráticos ou
cidadãos libertados e engrandecidos
pelo desfazimento dos acertos entre o
poder e o dinheiro?
A realidade indica qual o primeiro
passo: pôr a mão na ferida. As privatizações e os negócios que se constituíram sob sua sombra fornecem o fio
que levará dos desvios da época anterior aos desvios da época atual. Basta
seguir esse fio, na polêmica pública,
no jornalismo investigativo e na cobrança judicial, para expor a podridão
antinacional, anti-social e anti-republicana sobre a qual repousa o projeto
que estava e que continua no poder
-o projeto da pílula da rendição econômica, dourada (porém pouco) pelo
açúcar das políticas sociais compensatórias.
De tudo o que precisa o país, o de
que ele mais precisa hoje é coragem cívica, a coragem que diz: começamos
com quase nada, mas agora não esmoreceremos até ver o Brasil acordado. Até ver removidos do poder os
que traíram, perverteram e amesquinharam, por um prato de lentilhas e
por falta de imaginação, a República.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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