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São Paulo, terça-feira, 04 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Lula, o PT e a Federação

CESAR MAIA

Durante a campanha que consagrou o sr. Luiz Inácio Lula da Silva presidente da República, com toda legitimidade, nunca coloquei a estabilidade econômica à frente da estabilidade política como prioridade nacional. A estabilidade política -a democracia de verdade- é o bem maior que devemos preservar. Até porque a instabilidade econômica tem um preço político do qual nenhum governo escapa. Mas a instabilidade política pode ter consequências tão graves quanto imprevisíveis e profligar décadas de conquistas sociais e econômicas.
Hoje ninguém tem dúvida de que a crise argentina foi inteiramente de natureza política, cujo impasse estilhaçou o país. E com um agravante: a Argentina é uma Federação não resolvida, o que, desde Urquiza e Mitre, ressuma em suas crises. Esse me parece o ponto sobre o qual há que se debruçar o novo governo. A história das esquerdas mostra sua difícil convivência com regimes federativos. Não consegue entender a dialética de um poder central distinto do poder político regional. Por isso, a estrutura constitucional dos regimes federativos estabelece responsabilidades, distinguindo, inclusive, as privativas das compartilhadas.
Num país continental como o Brasil, esse é um dado ainda mais delicado para a estabilidade política. A mim não restam dúvidas quanto à natureza social-democrata do novo governo e aos propósitos do presidente eleito. O governo federal desdobra-se regionalmente com suas representações e órgãos, de forma a fazer fluir as suas políticas nacionalmente no nível de suas responsabilidades constitucionais. Por isso, há sempre uma verticalidade nas ocupações desses espaços, nos Estados e municípios.
Assusta-me e deve assustar a todos, a começar pelo presidente eleito, que se tenham dois governos. Um, social-democrata, organizado em Brasília nos órgãos centrais, e outro, bem mais à esquerda, organizado pelas bases do PT a seu critério, ocupando os espaços descentralizados da máquina federal nos Estados e municípios. Se for assim, como têm asseverado vários diretórios regionais do PT, teremos dois governos. E o que é extremamente grave: essa ocupação regional tenderá a se organizar com a expectativa de governos estaduais e municipais paralelos, rompendo com o princípio federativo, numa espécie de volta dos perdedores. Se isso ocorrer, estaremos vendo o desencadear de uma crise política de grandes proporções.


A história das esquerdas mostra sua difícil convivência com regimes federativos

A mim, não restam dúvidas da vontade e vocação democrática do presidente eleito e de sua equipe central. Mas, se sua atenção não estiver igualmente voltada, neste momento, para a dinâmica da ocupação da estrutura descentralizada do governo federal e esta, ocupada de baixo para cima, confundir a Federação com um Estado unitário, imaginando que as eleições presidenciais alcançam também a atribuição constitucional de governadores e prefeitos, então poderemos estar abrindo as portas para uma crise política com todos os ingredientes latino-americanos.
Os governadores e prefeitos foram eleitos exatamente da mesma forma que o presidente. O art. 1º da Constituição afirma que são eles -e suas instâncias de governo- que explicam a Federação. A Constituição define as suas responsabilidades privativas e compartilhadas, assim como as da União. Esses textos devem ser sagrados e estar em cima da mesa de todos os governantes, de forma a que se possam identificar os limites e, a partir deles, conduzir a um trabalho integrado de todas as esferas de governo, independentemente de cores partidárias.
A mim não restam dúvidas de que esse é o propósito do presidente eleito. Mas -e muitas vezes- as boas intenções e a confiança indefinida podem não ser adequadamente utilizadas, quando se trata de concepções heterogêneas quanto à natureza do Estado e ao alcance da legitimidade do voto. Se tudo começar bem, tudo acabará melhor ainda. Mas, se um descuido involuntário ferir a Federação, a instabilidade política será inevitável.
Aliás, as urnas deram claramente esse recado, afirmando a diversidade política nacional em nível regional, impedindo que a expressiva vitória presidencial transbordasse para os Estados. Em todos os principais Estados brasileiros -vide o Sudeste e o Sul como exemplo-, as urnas traduziram essa vontade de equilíbrio do eleitor. A voz das urnas deve ser bem ouvida pelo PT nos Estados e municípios, evitando constrangimentos hoje e problemas amanhã ao presidente eleito e ao país.
Se for assim -e espero que seja-, estaremos diante de uma alternância democrática e desejada de governo. E estaremos diante de uma democracia madura e consolidada e da necessária e imprescindível estabilidade política.

Cesar Maia, 58, economista, é prefeito, pelo PFL, do Rio de Janeiro. Foi prefeito da mesma cidade de 1993 a 1996.


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