São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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DEMÉTRIO MAGNOLI

As duas Américas

A polarização eleitoral entre o republicano George Bush e o democrata John Kerry reflete a profunda divisão política que atravessa a sociedade americana. Sob a perspectiva do Colégio Eleitoral americano, essa divisão inscreve-se no mapa como uma fronteira que separa duas Américas. Kerry venceu no nordeste e na Costa Oeste. Bush venceu no sul e no Meio-Oeste, na miríade de Estados menos populosos do "heartland". O campo de batalha decisivo foi a região dos Grandes Lagos, onde Kerry precisava de todos os Estados. Seu destino foi selado quando Ohio pendeu para Bush.
Kerry é Nova York e a Califórnia, o país cosmopolita e metropolitano. Bush é o Texas, Utah, Kansas, a Geórgia e as Carolinas, o país conservador e interiorano. O mapa do Colégio Eleitoral oferece uma imagem simplificada das duas Américas. A lente de aumento dos mapas em escala maior desvenda os detalhes.
Na "América de Kerry", Bush recebeu os votos minoritários dos subúrbios e das pequenas cidades. Na "América de Bush", Kerry recebeu os votos minoritários das principais cidades. A fronteira sociocultural entre as duas Américas passa por dentro de cada um dos Estados e configura um mosaico que distingue a "América urbana" da "América suburbana".
Nos Grandes Lagos, a população divide-se quase ao meio entre as metrópoles do cinturão industrial e as pequenas cidades das granjas e fazendas de milho. A batalha derradeira foi pelos corações e mentes dos operários industriais, cujos empregos desaparecem no caldeirão da globalização. A crise do movimento sindical tragou parte dos votos democratas e moveu o pêndulo de Ohio para o lado de Bush.
A campanha de Kerry jamais mirou a crítica nos fundamentos da Doutrina Bush e, por trás da fumaça retórica, prometeu manter o curso desastroso seguido por Washington no Iraque. Analistas superficiais tomaram o discurso democrata como evidência da tese de que não há diferenças de fundo entre Kerry e Bush. A antiga tese da semelhança entre os dois partidos tinha um fundo de verdade na Guerra Fria, mas hoje reflete apenas ignorância sobre as bases sociais que sustentam o projeto político de Bush.
O governo Bush representou a ascensão de uma nova maioria no Partido Republicano, constituída pela estranha articulação entre os neoconservadores e a direita cristã. Os neoconservadores são intelectuais internacionalistas que reinterpretam a herança missionária da política externa americana num sentido unilateralista e imperial. A "reforma do Oriente Médio" e a "expansão da liberdade" são os acordes do hino neoconservador. A direita cristã, instintivamente isolacionista, é a guardiã fanática dos valores morais tradicionais. A sua lírica canta a proibição do aborto e da pesquisa genética, o direito ao porte de armas e a supressão legal da união entre homossexuais.
As duas faces da nova maioria republicana, cujo esteio é o Big Business, distinguem-se em tudo, exceto na crença de que são portadores de verdades absolutas. O trauma de 11 de setembro de 2001 definiu um campo político para a coalizão improvável entre os sacerdotes do império e os da moral.
A "santa aliança" do governo Bush deitou raízes na "América suburbana", avessa à Europa, patriótica e xenófoba. Esse "país profundo", encapsulado no seu fundamentalismo, traduz a política na linguagem do bem e do mal, identifica Osama bin Laden a Saddam Hussein e vota motivado pela "guerra cultural" contra a modernidade. God, guns, gays.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.

magnoli@ajato.com.br


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