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DEMÉTRIO MAGNOLI
As duas Américas
A polarização eleitoral entre o
republicano George Bush e o democrata John Kerry reflete a profunda
divisão política que atravessa a sociedade americana. Sob a perspectiva do
Colégio Eleitoral americano, essa divisão inscreve-se no mapa como uma
fronteira que separa duas Américas.
Kerry venceu no nordeste e na Costa
Oeste. Bush venceu no sul e no Meio-Oeste, na miríade de Estados menos
populosos do "heartland". O campo
de batalha decisivo foi a região dos
Grandes Lagos, onde Kerry precisava
de todos os Estados. Seu destino foi selado quando Ohio pendeu para Bush.
Kerry é Nova York e a Califórnia, o
país cosmopolita e metropolitano.
Bush é o Texas, Utah, Kansas, a Geórgia e as Carolinas, o país conservador e
interiorano. O mapa do Colégio Eleitoral oferece uma imagem simplificada das duas Américas. A lente de aumento dos mapas em escala maior
desvenda os detalhes.
Na "América de Kerry", Bush recebeu os votos minoritários dos subúrbios e das pequenas cidades. Na
"América de Bush", Kerry recebeu os
votos minoritários das principais cidades. A fronteira sociocultural entre
as duas Américas passa por dentro de
cada um dos Estados e configura um
mosaico que distingue a "América urbana" da "América suburbana".
Nos Grandes Lagos, a população divide-se quase ao meio entre as metrópoles do cinturão industrial e as pequenas cidades das granjas e fazendas
de milho. A batalha derradeira foi pelos corações e mentes dos operários
industriais, cujos empregos desaparecem no caldeirão da globalização. A
crise do movimento sindical tragou
parte dos votos democratas e moveu o
pêndulo de Ohio para o lado de Bush.
A campanha de Kerry jamais mirou
a crítica nos fundamentos da Doutrina Bush e, por trás da fumaça retórica,
prometeu manter o curso desastroso
seguido por Washington no Iraque.
Analistas superficiais tomaram o discurso democrata como evidência da
tese de que não há diferenças de fundo
entre Kerry e Bush. A antiga tese da semelhança entre os dois partidos tinha
um fundo de verdade na Guerra Fria,
mas hoje reflete apenas ignorância sobre as bases sociais que sustentam o
projeto político de Bush.
O governo Bush representou a ascensão de uma nova maioria no Partido Republicano, constituída pela estranha articulação entre os neoconservadores e a direita cristã. Os neoconservadores são intelectuais internacionalistas que reinterpretam a herança missionária da política externa
americana num sentido unilateralista
e imperial. A "reforma do Oriente Médio" e a "expansão da liberdade" são
os acordes do hino neoconservador. A
direita cristã, instintivamente isolacionista, é a guardiã fanática dos valores
morais tradicionais. A sua lírica canta
a proibição do aborto e da pesquisa
genética, o direito ao porte de armas e
a supressão legal da união entre homossexuais.
As duas faces da nova maioria republicana, cujo esteio é o Big Business,
distinguem-se em tudo, exceto na
crença de que são portadores de verdades absolutas. O trauma de 11 de setembro de 2001 definiu um campo político para a coalizão improvável entre
os sacerdotes do império e os da moral.
A "santa aliança" do governo Bush
deitou raízes na "América suburbana", avessa à Europa, patriótica e xenófoba. Esse "país profundo", encapsulado no seu fundamentalismo, traduz a política na linguagem do bem e
do mal, identifica Osama bin Laden a
Saddam Hussein e vota motivado pela
"guerra cultural" contra a modernidade. God, guns, gays.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
magnoli@ajato.com.br
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