São Paulo, sábado, 04 de novembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Poder Judiciário deve reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo?

SIM

Em nome da dignidade humana

KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE

O PAPEL do magistrado em relação ao tema da união heterossexual, assim como em todos os demais, é o de ser o garantidor dos direitos humanos.
Constatamos que a legislação infraconstitucional e, principalmente, o pensamento transmitido nas universidades têm como ponto irradiador a propriedade, o que deu vazão para que o reconhecimento das relações pessoais ocorra nos estritos termos de uma sociedade de fato, na qual o sentido é exclusivamente a divisão do patrimônio. Sob este ângulo, são inexistentes para aqueles que não têm bens. Há um mundo de excluídos entre os excluídos homossexuais.
Contudo, os povos deram primazia, por tratados internacionais, ratificados pelo Brasil, ao valor da dignidade humana, acolhido como paradigma e referencial ético. É nesse nível que a relação homoafetiva deve ser analisada, para qualquer efeito e finalidade.
Importante registrar que direitos humanos "não nascem todos de uma só vez e nem todos de uma vez por todas". É um processo em construção, no qual o Judiciário tem papel fundamental, que realiza pelas decisões de primeira instância, construindo a jurisprudência e dando vida ao direito em seu processo de transformação, acompanhando o giro do mundo.
Antes falávamos de heterossexuais; agora, de relações homoafetivas. O núcleo da relação e da vida é outro, e essa compreensão os operadores do direito precisam alcançar.
O Judiciário engatinha, mas há passos significativos. O STJ, em ementa que teve como relator o ministro Quaglia Barbosa, que tratava de direito previdenciário, fez constar: "Não houve, pois, de parte do constituinte, exclusão dos relacionamentos homoafetivos, com vista à produção de efeitos no campo previdenciário, configurando-se mera lacuna, que deve ser preenchida a partir de outras fontes do direito".
Outra ementa, que teve como relator o ministro Humberto G. de Barros, indicou que "a relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de assistência médica".
O TSE, recentemente, considerou que o relacionamento homossexual estável gera a inelegibilidade prevista no artigo 14, parágrafo 7º, da CF.
Temos inúmeras decisões relativas à guarda de filho e herança decorrente de relações homoafetivas.
Em legislações estrangeiras, há previsão expressa de matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, como na Dinamarca, França, Portugal, Suécia e Alemanha, entre outros. Em alguns países, há autorização de registro de casais de um mesmo sexo e contratos especiais, como na Colômbia e Espanha e em algumas Províncias da Argentina e do Canadá.
No Brasil, temos proposições legislativas de caráter restrito que não chegaram a termo e estão nos meandros do Congresso. Entretanto, obrigatório ressaltar recente norma brasileira, a Lei Maria da Penha, que trata da violência doméstica e introduz novo parâmetro de aplicação do direito na matéria, ao estabelecer no artigo 5º que as relações pessoais "independem de orientação sexual".
A relação homoafetiva é um fato; hipocrisia fechar os olhos para sua existência e cruel não garantir dignidade para essas pessoas. Ainda que o nosso ordenamento jurídico infraconstitucional não discipline os direitos advindos das relações homoafetivas, a dignidade da pessoa humana é fundamento da República, que acolheu os princípios da igualdade e da liberdade. Assim, cristalino que a união estável não pode ser entendida como exclusivamente heterossexual.
Cabe ao magistrado atuar no vácuo normativo. Fábio Konder Comparato lembra que "a finalidade última do ato de julgar consiste em fazer justiça, não em aplicar cegamente as normas do direito positivo. Ora, a justiça, como advertiu a sabedoria clássica, consiste em dar a cada um o que é seu. O que pertence essencialmente a cada indivíduo, pela sua própria natureza, é a dignidade de pessoa humana, supremo valor ético. Uma decisão judicial que negue, no caso concreto, a dignidade humana é imoral e, portanto, juridicamente insustentável".
Os magistrados têm a obrigação de dar eficácia à idéia de que os seres humanos devem ter uma vida digna como atributo indissociável de suas existências, e só atingiremos essa meta se, na lacuna legislativa, deixarmos de tratar as pessoas envolvidas em relações homoafetivas como sujeitos de segunda classe ou não sujeitos.


KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE, 47, juíza de direito em São Paulo, é presidente da Federação de Associações de Juízes para a Democracia da América Latina e Caribe e secretária do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia.

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