São Paulo, quarta-feira, 04 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Ouro Preto e a desmemorização oficial

CARLOS ALBERTO CERQUEIRA LEMOS

As recentes notícias sobre Ouro Preto -ameaçada de perder a honra e a glória de pertencer ao exclusivo grupo de cidades históricas eleitas como Patrimônio da Humanidade pela Unesco- nos levam a lembrar que ela não é nosso único bem cultural urbanizado maltratado. Na verdade, o descaso às cidades antigas com os seus centros históricos tombados é generalizado -não só o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), também os órgãos preservacionistas estaduais não têm a autoridade e a vigilância necessárias à manutenção das características originais justificadoras da salvaguarda da memória coletiva ali expressa pelo tombamento.
Esse instituto legal de preservação protege para sempre, nessas urbanizações memoráveis, as relações que mantêm entre si os elementos do conjunto urbano -relações entre cheios e vazios, entre a massa edificada e as áreas livres, entre o ocupado e o verde, isto é, entre as ruas, os jardins e os quintais, além de, evidentemente, garantir a intocabilidade das construções de alto valor histórico ou artístico. Acontece que isso nunca foi observado. Antigamente, as transgressões ocorriam com muita cautela e eram pontuais, e os confrontos entre poderes municipais e estaduais ou federais, sempre amenizados por mediações políticas civilizadas.
A Parati tombada há dezenas de anos já não é a mesma: transformou-se num cenário para turistas pedestrianizados impedidos de enxergar, atrás da novidade dos altos muros, as piscinas, os vestiários, as saunas e as churrasqueiras hoje ocupando o lugar das velhas mangueiras, dos cajueiros, dos pés de fruta-pão ou das pitangueiras dos velhos tempos. Ali há, por exemplo, longo quintal que recebeu construções imitando casas de porta e janelas antigas para constituírem uma nova "rua" onde o hoteleiro aloja seus hóspedes sem que saiam do "ambiente colonial". Algumas vezes, velhos sobrados têm os seus telhados trocados por outros mais inclinados para abrigar nos novos sótãos "suítes" providas de cópias de antigas lucarnas envidraçadas.
Nas antigas cidades históricas mineiras, algo semelhante também acontece. Em Tiradentes, outro exemplo, vimos quintais ocupados por recentes e amplas edículas construídas dentro do "estilo da cidade". Em Santana de Parnaíba, território sob a vigilância do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo), o quadro de desrespeito é o mesmo.


A ameaça da Unesco é que enrubesce alguns poucos, mas a vergonha deveria ser generalizada


Ouro Preto há mais de 30 anos ocupa a atenção da Unesco que, por volta de 1968, providenciou um relatório circunstanciado elaborado pelo arquiteto português Alfredo Viana de Lima destinado a embasar um plano diretor capaz de manter salva a cidade da sanha especuladora, ávida em ocupar áreas livres adjacentes e em levantar construções novas ligadas ao turismo crescente, inclusive dentro do perímetro tombado. Desse relatório surgiram planos, belas publicações e mil promessas da política oscilante, no fundo, sem vontades maiores de preservar qualquer coisa. As prefeituras displicentes, está visto, não são as únicas culpadas pelas agressões constantes à memória urbana dos sítios ditos históricos.
Na verdade, há de se inquirir como foi possibilitada a lenta violação das determinações preservacionistas embutidas nos atos de tombamento ante a complacência das autoridades do Iphan. As obras transgressoras são relativamente lentas, e não pode ser aceita a desculpa da falta de gente habilitada nas obrigatórias fiscalizações. Há sempre quem denuncie ou reclame. As infrações estão aí para todos apreciarem e condenarem balançando negativamente a cabeça e ficando só nisso. Todos já estão conformados com a inoperância do governo. A ameaça da Unesco é que enrubesce alguns poucos, mas a vergonha deveria ser generalizada. De todos. É que o tempo varreu os ideais de Rodrigo Mello Franco de Andrade, de seu mentor atuante Lúcio Costa, de seus auxiliares Augusto Silva Telles, Paulo Tedim, Luís Saia, Ayrton de Carvalho e tantos outros unidos por um comando seguro e honrado. Sempre sofrendo a eterna falta de verbas, porém jamais fechando os olhos em condescendentes silêncios.
O caminhão fotografado debruçado sobre o chafariz mutilado de Ouro Preto retrata muito bem a indiferença, a falta de autoridade e a incompetência reinantes entre nós nesse processo de desmemorização.


Carlos Alberto Cerqueira Lemos, 76, arquiteto, é professor de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Eriksom Teixeira Lima: Velhos conselhos para o novo governo

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.