São Paulo, quarta-feira, 05 de janeiro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Bezerro nômade

JORGE BOAVENTURA

O bezerro de ouro nunca foi adorado por ser bezerro, mas por ser de ouro, ou melhor, pelo que este simboliza em termos de erigir em foco central, se não exclusivo, da existência humana a conquista de todos os apetites e impulsos de domínio e de desfrute que vêm do seu componente carnal, em flagrante contradição com os alicerces culturais da civilização a que pertencemos e em razão de cujos valores deu-se o holocausto de cerca de 15 milhões de jovens que, do mundo inteiro, supunham estar contribuindo para "salvar a civilização ocidental cristã".
Mas o bezerro de ouro continua a ser adorado. E, de fato, tudo quanto ele simboliza continua, tendo mudado apenas o seu nome, que agora passou a ser "mercado". E os centros fundamentais do poder desse "deus", irradiadores principais de sua influência, são, de fato, nômades. Assim, e para nos situarmos apenas na história moderna, vemo-lo primeiro em Veneza, no final do século 15, quando Nicolau de Cusa começou a pregar a conveniência de as sociedades humanas se organizarem em Repúblicas comprometidas com o direito natural e com o bem comum, ademais comprometidas com o desenvolvimento dos conhecimentos humanos.


O bezerro de ouro continua a ser adorado, tendo mudado apenas o seu nome, que agora passou a ser "mercado"


Os leitores têm ouvido e lido milhões de vezes que o Medievo foi a "idade das trevas". Das trevas, o período em que nasceu a própria concepção de universidade, sendo que as mais reputadas universidades européias ainda hoje existentes datam da Idade Média? É que a desinformação campeia de modo que as multidões aturdidas não se defendam contra os objetivos do bezerro, hoje "mercado". Que não se dêem conta, por exemplo, de que o Fed representa uma junta dominada inteiramente por bancos particulares, aos quais foi concedido o privilégio de emitir a moeda americana, comprometendo-se eles a depositar, a cada dólar emitido, uma certa quantia em ouro a no Forte Knox.
Na Conferência de Bretton-Woods foi a moeda americana erigida em referencial monetário mundial, e continuou a sê-lo, mesmo depois de 1961, quando solicitada pelo presidente Georges Pompidou, da França, a troca dos dólares de que o seu país dispunha pelo ouro a eles correspondente. Em calote planetário, foi informado de que o referido ouro "não estava disponível".
Daremos agora ao leitor uma informação factual, cujas inferências remetemos à sua inteligência: com base em ordem executiva, de nº 11.140, de junho de 1963, o então presidente Kennedy determinou ao Tesouro norte-americano, não ao Fed, que emitisse US$ 4,6 bilhões. Em novembro do mesmo ano ocorreu o seu assassinato. Seu sucessor, Lyndon Johnson, como uma de suas primeiras decisões, mandou recolher a emissão feita pelo Tesouro do seu país.
Mas, voltando ao nomadismo do bezerro, vê-mo-lo transferir-se de Veneza para Amsterdã, eis que a Liga de Cambrai, resultante das idéias de Nicolau de Cusa, embora anulada por descensões internas suscitadas pela hábil diplomacia do bezerro, tornara incômoda a vizinhança, ao mesmo tempo em que a exigüidade do mar Adriático fizera transferi-lo para a Holanda. Veneza entrou em decadência, mas a Holanda em período de esplendor, com as companhias das Índias Ocidentais e Orientais inaugurando a presença de multinacionais, ao mesmo tempo em que iniciava tentativas de expansão colonialista de que tivemos exemplo na presença entre nós de Maurício de Nassau, na Capitania de Pernambuco, dali expulso na batalha de Guararapes, quando verdadeiramente nasceu a nacionalidade brasileira.
Mas havia na Holanda a Casa de Orange, com imbricações genealógicas que ensejaram ao então príncipe Guilherme postular a ocupação do trono da Inglaterra, e um grupo de financistas ingleses e holandeses o levou a subir ao referido trono, sob o nome de William 3º. Um dos primeiros atos do novo rei foi criar o Banco da Inglaterra, que na verdade era um banco particular, de capital inglês e holandês. Bem mais adiante, o referido banco passou a emitir a moeda inglesa, a libra, que curiosamente virou o referencial monetário mundial.
No início do século passado já os líderes do bezerro percebiam que os EUA eram o futuro, pelo imenso potencial de suas riquezas -e para lá dirigiu-se um daqueles líderes, Paul Warburg. Não havia, nos EUA, trono a ocupar. O expediente consistiu, então, em convencer o Congresso americano a conceder a 12 bancos particulares emitirem com exclusividade a moeda americana, com o compromisso, já visto, dos depósitos em ouro. Os 12 bancos são o Fed.
O presidente da República, em recente pronunciamento na ONU, teve a coragem de se referir a "uma onipresente e poderosa engrenagem invisível", que comanda as injustiças que ele denunciava. Tentamos oferecer ao leitor a nossa visão sobre o que integra a "engrenagem". De seus integrantes, daremos um exemplo: o banco J. P. Morgan, que estabelece índices de "risco-país", os quais, é claro, serão tanto mais baixos quanto mais submisso estiver o país à exploração a que o sujeita o mercado.
Quando migra o bezerro nômade, ou melhor, o seu núcleo dirigente principal, a nação que o hospedou entra em decadência. Ousamos dizer que é o que está ocorrendo aos EUA, já abandonado em favor do novo centro de poder do bezerro, que claramente decidiu migrar para a China. Talvez para purgar a cegueira do povo que o leva a acreditar que está combatendo o terrorismo, depois de ter praticado o mais terrível ato de terror da história, com as bombas atômicas atiradas em Hiroshima e Nagasaki, onde pereceram cerca de 180 mil pessoas e onde toda e qualquer espécie de vida foi extinta.
No horror de 11 de Setembro morreram cerca de 3.000 pessoas, e os terroristas que o praticaram, para fazê-lo, imolaram as próprias vidas, o que merece reflexão.

Jorge Boaventura, 82, ensaísta e escritor, é conselheiro do Comando da Escola Superior de Guerra.


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