São Paulo, domingo, 05 de fevereiro de 2006

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O mundo solidário, 2006

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

O Fórum Social Mundial (FSM) de 2006 é policêntrico: realiza-se em três continentes. Acabam de ter lugar os eventos africano (Bamako, Mali) e americano (Caracas, Venezuela) e, no próximo mês de março, terá lugar o asiático (Karachi, Paquistão).
O FSM de Bamako, do qual participaram cerca de 20 mil pessoas, revelou mais uma vez a capacidade da África para sediar realizações internacionais que permitem dar visibilidade às perspectivas africanas, não só sobre os problemas daquele continente como também sobre os problemas do mundo.
Mereceram especial atenção os temas da dívida externa, modelos de desenvolvimento, acesso à terra e à água, luta das mulheres contra as muitas formas de discriminação (violência doméstica, destruição dos mercados locais, HIV/ Aids). O fórum de Bamako tornou claro que os problemas que afligem a África não são apenas o produto das relações injustas entre o Norte e o Sul. Devem-se também a governos nacionais corruptos e autoritários. À luz da experiência de Bamako, é de prever que o FSM de 2007 (um só evento), a se realizar em Nairóbi (Quênia), será um êxito.
Do FSM de Caracas, participaram cerca de 100 mil pessoas, sendo particularmente significativas as delegações da Colômbia, do Brasil e dos EUA. A grande participação de organizações e movimentos sociais norte-americanos foi uma das novidades mais vincadas desse fórum. A presença destacada da ativista contra a guerra no Iraque Cynthia Sheehan -que montou a sua tenda de protesto em frente ao rancho de G.W. Bush, no Texas- simbolizou a integração das forças progressistas norte-americanas -até agora relativamente isoladas- na luta continental e mundial por uma sociedade mais justa e pacífica.
O FSM reflete sempre o contexto político da região em que tem lugar. Em Caracas, esse contexto se refletiu em três níveis.


Bamako e Caracas foram nas últimas semanas os rostos da sociedade civil global em luta pela paz e pela justiça social

Primeiro, na saliência da luta contra o imperialismo econômico e militar dos EUA. Nunca como hoje os EUA tiveram tantas dificuldades de relacionamento com tantos países importantes do continente. O projeto de livre comércio continental (Alca), promovido pelos EUA, ficou enterrado (talvez definitivamente) em Mar del Plata, onde teve lugar a última cimeira interamericana.
Enquanto os Estados Unidos recorrem a tratados de livre comércio bilaterais com os países mais pobres do continente, Venezuela, Argentina, Brasil, Uruguai e Cuba vão desenvolvendo um projeto alternativo de integração regional. Não restam dúvidas de que a América Latina é hoje o elo fraco do imperialismo norte-americano.
O contexto regional levou também a múltiplos debates sobre a "onda" de governos democráticos de esquerda que perpassa o continente, do que as manifestações mais recentes são a eleição de Evo Morales, na Bolívia, e a de Michelle Bachelet, no Chile -e a que se podem juntar, em futuro próximo, a reeleição de Lula, no Brasil, e a eleição de López Obrador, no México.
Não se trata de uma esquerda, mas, antes, de várias esquerdas, que têm em comum o respeito pelo jogo democrático, a afirmação de autonomia em relação aos EUA, tanto econômica (recusa da Alca) como política (uma política externa não alinhada), e a busca de uma integração regional endógena.
Constituem diferentes pactos políticos a partir de uma matriz que podemos designar como social-democracia desenvolvimentista. Recorrem, porém, a instituições diferentes das da social-democracia européia, da bolsa-família brasileira às missiones venezuelanas. Não criam fundos estruturais de coesão social do tipo dos vigentes na União Européia, mas procuram que a integração regional combine solidariedade com vantagens econômicas. Por isso, trocam serviços e bens (por exemplo, petróleo por vacas prenhas ou serviços médicos) fora do mercado capitalista.
Essa "onda" e essas novas instituições suscitam um conjunto novo de questões sobre as estratégias dos movimentos sociais e, em especial, sobre as articulações destes com os governos e os partidos progressistas. Entre a autonomia radical dos zapatistas e a adesão acrítica a um programa político vitorioso, são possíveis muitas posições intermédias, como a da cooperação autônoma e confrontacional do MST.
O contexto regional refletiu-se ainda no fórum pela presença do presidente Chávez. Ele falou aos participantes durante cerca de seis horas. Penso, no entanto, que não se pode deduzir daqui que tenha manipulado o fórum. Foi ouvido com agrado por muitos que ouviram na sua fala os objetivos da luta pela qual sempre lutaram. Mas os mais experientes não deixaram de pensar que, se Chávez pareceu ser o salvador em 2006, já o mesmo tinha sucedido com Lula em 2003, e é natural que venha a suceder com outro líder em 2007 e 2008.
Entretanto a luta continua. Onde Chávez errou foi ao tomar posição, no seu primeiro discurso, num debate interno do FSM, a favor daqueles que pretendem transformar o FSM -de espaço aberto de encontro, num ator político global mais eficaz ou talvez mesmo numa nova internacional. Chávez teve consciência do mal-estar que criara, não pela posição, mas pela interferência e, no último discurso, não se cansou de salientar a autonomia do fórum. Bamako e Caracas foram nas últimas semanas os rostos da sociedade civil global em luta pela paz e a justiça social.

Boaventura de Sousa Santos, 65, sociólogo português, é professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). Escreveu, entre outros livros, "A Crítica da Razão Indolente" (Cortez).

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