São Paulo, quarta, 5 de março de 1997.

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Pontal e pontarias



Nada mais injusto que a legislação que protege o latifúndio e escorraça os que querem terra para plantar e comer
FREI BETTO
De nada adiantou, até agora, o tríplice puxão de orelhas -do papa, da Universidade de Bolonha e dos intelectuais- que o presidente FHC levou na Itália para empenhar-se na reforma agrária. Um dos graves problemas da intelectualidade brasileira e dos políticos, com honrosas exceções, é refugiar-se na abstração dos conceitos. Fala-se muito, faz-se pouco.
Oito sem-terra são feridos a bala no Pontal do Paranapanema, e o governo demonstra apenas preocupação e resolve passar o trator sobre padres e bispos que apóiam o MST. Nem sequer favorece os esforços do governo Mário Covas e, em especial, do secretário da Justiça, Belisário dos Santos Jr., em prol de uma solução urgente e pacífica no oeste paulista.
Apenas um latifundiário é preso, enquanto permanecem impunes os assassinos responsáveis pelos massacres de Corumbiara, Eldorado do Carajás e Ourilândia do Norte. No entanto, sem dar um tiro, vários militantes do MST no Pontal já passaram pela cadeia nos últimos anos.
E agora encontra-se preso Márcio Barreto; outros quatro são caçados como bandidos, entre os quais José Rainha; e permanecem hospitalizados, em decorrência dos ferimentos recebidos, Antônio Levino Neves e Míriam Farias de Oliveira.
``Estamos entrando numa situação perigosa de despotismo esclarecido'', declarou o professor José Arthur Giannotti, amigo do presidente. Déspota, segundo o ``Aurélio'', é um ``senhor absoluto e arbitrário''.
De fato, o governo FHC, após cooptar a maioria do Congresso Nacional, age sem eira nem beira: mantém a ``mágica'' da estabilidade do real graças ao crescimento espantoso da dívida interna e aos juros altos; desmantela o patrimônio público, da Vale do Rio Doce às telecomunicações, por subserviência às grandes empresas transnacionais; diz que não tem recursos para a educação e a saúde, e, no entanto, os ladrões dos títulos públicos embolsam US$ 600 milhões, e suas operações dão aos cofres públicos um prejuízo de US$ 6 bilhões.
Incapaz de manter canais de diálogo e negociação com os movimentos sociais, o governo abriga-se na própria perplexidade.
O ministro Raul Jungmann evoca o império da lei para os sem-terra e mantém os braços cruzados diante do genocídio praticado pelos latifundiários. O ministro da Justiça, Nelson Jobim, prefere os argumentos típicos dos tempos da ditadura: há infiltração no MST! Não desarma os fazendeiros e jagunços, não impede o contrabando de armamentos, não prende quem fere e mata.
Tudo indica que o governo prefere o perigoso caminho da satanização dos sem-terra: primeiro, a imagem de que agem ao arrepio da lei; segundo, declarar o MST ilegal; terceiro, jogá-lo na clandestinidade.
A diferença é que lavrador perseguido não vai para o exílio. Obrigado a ficar em seu país, não lhe resta outra alternativa senão defender-se de um governo despótico.
Numa reunião de empresários na Alemanha, o bispo do ABC defendia as greves metalúrgicas. Um diretor de empresa protestou indignado: ``Mas isso é contra a lei!''. O bispo reagiu: ``Então o senhor está de acordo com os alemães que respeitaram as leis de Hitler?''.
Nem toda lei é justa. E, no Brasil, nada mais injusto que a legislação que protege o latifúndio e escorraça aqueles que querem terra para plantar e comer. Sem reforma agrária, vamos entrar no século 21 com o perfil da Europa nos séculos 12 e 13 e com o dos EUA nos tempos do faroeste. A Alemanha fez reforma agrária no século 14, e os EUA, no século passado. E ainda há quem julgue o Brasil ``moderno''.
Boa parte dos fazendeiros do Pontal são grileiros que invadiram terras públicas. Em vez de caçar piolho em cabeça de alfinete, o ministro Nelson Jobim deveria cuidar, o quanto antes, da reforma do Código Penal e das leis que impedem o governo de agilizar a reforma agrária. Porém estará o governo realmente interessado em promovê-la?
Os sem-terra do Pontal foram feridos por tentarem defender uma plantação de milho. O Evangelho conta o atrito de Jesus com os fariseus quando os discípulos arrancaram espigas de trigo de uma plantação (Marcos, 2, 23-28). Era contra a lei o que fazia o grupo de Jesus. Este, porém, argumentou que quem passa fome tem seu direito à sobrevivência acima da lei e da suposta sacralidade da propriedade.
A ditadura militar no Brasil desabou após 20 mil inquéritos policiais-militares e cerca de 400 cadáveres. Quantos cadáveres serão precisos para o governo passar das palavras aos atos e, se não se mostra disposto a defender o direito dos pobres, ao menos salvar a sua imagem interna e externa?
Carlos Alberto Libânio Christo, 51, frei Betto, frade dominicano e escritor, é consultor do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e membro da Fundação Sueca de Direitos Humanos.

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