São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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TENDÊNCIAS/DEBATES

O livro do traficante


DRAUZIO VARELLA

O cineasta João Moreira Salles pagou quatro prestações de R$ 1.200 para um traficante foragido escrever um livro. O caso provocou crise na área da segurança do Rio de Janeiro e teve forte repercussão na imprensa, com sucessivos pronunciamentos do governador e de outras autoridades. A CPI do Narcotráfico decidiu, então, convocar o cineasta. Seria crime um cidadão enviar dinheiro a um traficante sob qualquer pretexto? O governador garante que sim. Alguns juristas dizem que não.
Valeria a pena aproveitarmos a polêmica para refletir com mais seriedade sobre a questão da droga na sociedade moderna.
Avanços científicos ocorridos nos últimos 20 anos permitiram identificar os circuitos e receptores cerebrais de virtualmente todas as drogas capazes de provocar dependência. No momento os estudos estão concentrados em desvendar as diferenças entre os cérebros de indivíduos dependentes e não-dependentes. Na medicina atual, dependência química é considerada doença crônica, recidivante, que resulta da exposição prolongada do cérebro aos efeitos de uma droga.
Infelizmente existe uma distância enorme entre o detalhado conhecimento acumulado nessa área e os resultados obtidos na clínica com a recuperação dos doentes. Qualquer pessoa que tenha tido a desventura de acompanhar um caso na família é testemunha da ineficácia dos tratamentos disponíveis para a recuperação dos dependentes. A cura da dependência química é considerada um dos maiores desafios da medicina do século 21.

Em 11 anos de trabalho no Carandiru, nunca vi um grande traficante atrás das grades
A sociedade brasileira tem reagido à ameaça da droga com medidas policiais, sem procurar conter a demanda por meio de programas de prevenção e tratamento dos usuários. Essa estratégia simplista produz resultados insignificantes diante da magnitude do problema que enfrentamos.
O tráfico corrompeu a polícia e o restante da sociedade brasileira de tal forma que já não conseguimos enxergar os limites de sua ação. Vão parar na cadeia só os traficantes menores encarregados do comércio de rua, imediatamente substituídos por novos recrutas. Seus empregadores, jamais. Em 11 anos de trabalho na Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo, nunca vi um grande traficante atrás das grades.
Na outra vertente, a dos doleiros, donos de financeiras e bancos de investimento, que lavam o dinheiro do tráfico, o risco de ser preso é zero no Brasil. Ao contrário, como cabe a eles a parte do leão nos lucros do negócio, obtida sem nenhum envolvimento com a arraia-miúda que arrisca a vida nos pontos-de-venda, podem frequentar as colunas sociais impunemente.
Voltemos, então, ao caso do agora procuradíssimo Marcinho VP, do cineasta João Salles, do governador do Rio e da CPI. Com o adiantamento para que o traficante escrevesse o livro, o cineasta se expôs à execração pública, catalisada pela esperteza de políticos que, na falta de um programa de combate às drogas digno desse nome, saem atrás de publicidade barata, que casos como esse podem render.
O cineasta pagou caro pela ousadia de sua atitude e ainda vai passar pelo constrangimento de depor diante da CPI, com a finalidade de esclarecer sua contribuição de R$ 4.800 ao narcotráfico brasileiro. O traficante, que fugiu em outubro de 1996 pela porta da frente da Polinter (Polícia Interestadual), no Rio, provavelmente será preso agora. Curiosamente no momento em que perdeu o poder no morro e decidiu escrever um livro de memórias.


Drauzio Varella, 56, médico oncologista, é autor do livro "Estação Carandiru" (Cia. das Letras).




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