São Paulo, segunda-feira, 05 de abril de 2004

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JOSÉ SERRA

Governar é preciso

"Não há necessidade maior para as pessoas que vivem em comunidade do que a de serem governadas, autogovernadas se possível, bem governadas se tiverem sorte, mas, em qualquer caso, governadas."
(Walter Lippmann)

O governo Lula sofre de três problemas endógenos, começando pela falta de programa. O PT tinha um programa histórico que se baseava num diagnóstico-denúncia da sociedade brasileira: desigualdades, falta de acesso da grande maioria da população a terra, educação e saúde, economia a serviço dos bancos e do imperialismo, corrupção na administração, domínio da mídia pelos grandes grupos econômicos.
Chegando ao governo federal, o PT engavetou esse programa, mas não o substituiu por outro coerente. Foi acometido por uma variante da síndrome de Estocolmo -aquela que torna as vítimas apaixonadas por seus algozes. O que era condenado passou a ser adotado com gosto: aliança com os setores mais atrasados da política brasileira, política econômica baseada num tripé de juros estratosféricos, carga tributária sideral e cortes draconianos de gastos essenciais, revogação do instituto da CPI, devoção aos credos do mercado financeiro internacional.
O segundo problema é a falta de capacidade administrativa para fazer as coisas acontecerem, inclusive as que não exigem muito dinheiro. As iniciativas do Palácio do Planalto se resumem a ações de cooptação política, azeitamento da máquina publicitária, discursos cansativos e mobilização do aparato governamental para intimidar forças políticas e instituições que pensam ou agem de modo diferente do admitido pelos donos do poder.
Esse padrão, com poucas exceções, se estende aos ministérios. Mesmo na Saúde, onde, diferentemente da Educação, se procurou manter as diretrizes do governo Fernando Henrique, os retrocessos têm sido inegáveis: cortes de recursos, passagem dos remédios genéricos para o segundo plano das prioridades, loteamento da Funasa e do Inca, desaceleração do cartão SUS e do Programa de Formação de Auxiliares de Enfermagem.
O terceiro problema é a ocupação do aparato de Estado pelo PT. A direção partidária se transplantou para o núcleo do governo de mala e cuia e espalhou seus seguidores por todas as instâncias. Tudo isso sem nenhum projeto de sociedade, diferentemente do modelo bolchevique de partidarização do Estado, que tinha pelo menos uma utopia, maravilhosa para uns ou abominável para outros, mas real. No modelo petista, trata-se de um bolchevismo patrimonialista.
Esse modelo tem vários problemas. Não gera desenvolvimento nem empregos, estanca as políticas sociais, não incentiva a moralidade e não leva a uma administração eficiente. Há governo demais se reunindo de forma exaustiva, armando truques publicitários, caçando bodes expiatórios, desperdiçando recursos públicos, como no caso dos erros da política de juros do Banco Central, que custam bilhões de reais canalizados para rentistas, e não para produtores. Por outro lado, no que importa, há governo de menos, funcionando mal.
Com a popularidade em declínio, há o risco de que a reação petista se torne cada vez mais baratinada e truculenta, como já vem acontecendo, tensionando a estabilidade institucional. Assim, se me perguntassem qual é a maior carência do Brasil hoje, eu diria que é a falta de governo. A sorte de os brasileiros serem bem governados parece distante, mas, a esta altura, governo que começasse a funcionar já seria lucro.


José Serra escreve às segundas nesta coluna.


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