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MARINA SILVA
Mistério no agreste
ASSISTI pela primeira vez na
cidade-teatro de Nova Jerusalém, em Pernambuco, a
encenação da Paixão de Cristo. Um
espetáculo sem igual no mundo,
não só pela grandiosidade do seu
palco, com 100 mil m2, mas por sua
origem, seus protagonistas e pelo
trabalho artístico. As comoventes
palavras de Jesus, em completo
acordo com o texto bíblico, demonstram o excelente trabalho do
autor, Plínio Pacheco (1926-2002), que mesclou passagens dos livros de Jó, dos Salmos e do profeta
Isaías, entre outras do Novo Testamento, ditas pelos demais protagonistas da boa-nova bíblica.
Da iniciativa do comerciante
Epaminondas Mendonça, sogro de
Plínio, foi mesmo perfeita a ideia
de encenar a Paixão de Cristo naquela paisagem do agreste nordestino. O lugar parece ter sido esculpido especialmente para acomodar e tornar mais fidedigna a atuação dos atores, sustentados o tempo todo pelo galardoado elenco de
500 figurantes locais. A religiosidade do povo nordestino, ele próprio protagonista de um espetáculo diário de paixão e fé, merecia um
evento como esse. Impossível não
mencionar o esforço e o talento
dos mais de 60 atores, com a participação neste ano de Eriberto
Leão, Suzana Vieira, Mauro Mendonça, Paulo César Grande e Dig
Dutra, entre outros.
Tanta beleza só reforçou a sensação de que, por meio da arte e da
fé, talvez tenhamos as melhores
chaves para abrir as portas de
grandes mistérios. Aliás, o que não
falta no episódio da paixão de Cristo é a irrepresentável presença do
mistério. Como disse o filósofo
francês Dany-Robert Dufour, em
"O Mistério da Trindade": "Se há
mistério, é porque o homem está
em ressonância direta com esta
forma". Mesmo que seja como "o
lugar onde a razão encontra seu limite absoluto" pela interrupção do
encadeamento de causas e efeitos.
Em meio à respeitosa multidão
de espectadores, nos movimentávamos pelos nove cenários, iluminados pelo maior refletor que um
palco artístico pode ter: a lua -que
transbordava, de tão cheia. E pude
sentir o tempo todo um agradável
frescor de gratidão pela feliz junção da arte, espelho de toda a representação, com a fé, chave de toda a revelação. Juntas ali, como irmãs siamesas, tornaram apreensível, para crentes e não crentes, o
grandioso e incompreensível mistério da morte e ressurreição de
Jesus Cristo, que atravessa séculos e gerações.
"O elemento interior da obra [de
arte] é seu conteúdo", disse o pintor russo Wassily Kandinsky
(1866-1944), em "O Espiritual na
Arte". "Deve, portanto, haver vibração de alma. Se esta não existe,
não pode nascer uma obra. Em outras palavras, só pode haver uma
aparência de obra", ensinou.
contatomarinasilva@uol.com.br
MARINA SILVA escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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