São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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MEMÓRIA SELETIVA

Uma legião de analistas econômicos internacionais encorajou, por anos a fio, a Argentina a persistir na linha de política econômica que ela seguiu até o final do ano passado. Quando as dificuldades da Argentina começaram a se avolumar, na virada de 2000 para 2001, os elogios foram escasseando. A partir do momento em que eclodiu a imensa crise em que o país vizinho se encontra, esses analistas simplesmente lavaram as mãos.
Espanta a ausência de autocrítica dessa massa de economistas, financistas e jornalistas. Afinal, eles devem ser considerados avalistas daquela política econômica e, portanto, cúmplices da "débâcle" argentina. Em vez de reconhecer sua participação, muitos atribuem a culpa pelas dificuldades atuais exclusivamente aos argentinos. Com isso, justificam a omissão do FMI e das autoridades dos países ricos, que continuam impassíveis ante a necessidade premente de socorro financeiro à Argentina.
Exemplo dessa atitude foi dado por artigo recente de Martin Wolf, colunista do "Financial Times". O articulista atribui o desastre atual à "teimosa loucura" do presidente e aos políticos argentinos em geral, caracterizados como "crianças irresponsáveis". Esse sistema político deficiente seria incapaz de impor a disciplina fiscal que o FMI -justificadamente, segundo Wolf- exige para conceder novos créditos ao país.
É irônico que o articulista atribua as dificuldades atuais ao desequilíbrio das contas públicas na segunda metade dos anos 90. A atitude denota memória seletiva, pois o governo argentino produziu esse desequilíbrio enquanto implementava programa econômico acordado com o FMI.
Os analistas econômicos e o próprio FMI não deram importância ao desequilíbrio fiscal argentino enquanto o país pôde ser apresentado como exemplo de liberalização radical bem-sucedida. Agora que o país entrou em crise, expondo as graves limitações daquele modelo, a maioria tenta se dissociar do fracasso.
Há quem seja capaz de produzir argumentos mais audazes do que os de Wolf. Recentemente, Rudiger Dornbusch, professor do Massachusetts Institute of Technology, recomendou à Argentina que, a fim de readquirir credibilidade internacional, renunciasse por alguns anos a grande parte de sua soberania na condução da política econômica -exatamente o que o país vinha fazendo enquanto insistia no "currency board".
Exemplo extremo de empáfia e autoritarismo foi dado pelo economista Jeffrey Sachs. Ele se declarou "maravilhado" com o golpe que tentou derrubar Hugo Chávez da presidência da Venezuela. Entre a democracia e o livre mercado ficou clara a sua preferência. Ainda falta muito respeito, por parte de uma relevante fatia dos analistas internacionais, à realidade, aos fatos e à soberania dos países latino-americanos.


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