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TENDÊNCIAS/DEBATES
Caminhos incertos
BORIS FAUSTO
Refiro-me à convicção de que práticas corruptoras são um tema algo secundário, que deve ceder terreno ao combate às injustiças sociais
QUANDO A onda do "mensalão"
e de outras práticas delituosas
veio à tona, a barragem de fogo
contra os fortes indícios ou as claras
evidências deu margem a um leque de
estranhos argumentos.
Hoje, alguns nem merecem atenção, como a "tese" da conspiração das
elites -que, aliás, vão muito bem,
obrigado- contra o governo e o PT.
Outros devem ser relembrados nesta
conjuntura em que as operações da
Polícia Federal vêm desvendando esquemas de corrupção multipartidários, atingindo, em grau variável, as
diversas instâncias de poder.
Esses argumentos são os que desqualificaram as denúncias como uma
"ofensiva moralista", desfechada pelos principais órgãos da imprensa e
por um ou outro aguerrido profissional de televisão. O moralismo devia
ser denunciado -dizia-se- porque
seu objetivo, a serviço da "direita", era
obscurecer os avanços sociais promovidos pelo atual governo, promovendo, como lastro, uma histeria da classe média.
Se essa afirmação é hoje risível
diante das características da delinqüência desvendada nos dias que correm, vale a pena insistir, tomando o
fio da meada, na visão de uma certa
"esquerda" sobre o chamado moralismo. Quero me referir à convicção de
que práticas corruptoras, mesmo generalizadas, são um tema relativamente secundário, que deve ceder
terreno preferencial ao combate verbal e prático -às vezes, mais verbal do
que prático- às inegáveis injustiças
de nossa sociedade. Essa concepção
ganhou ares de verdade ao longo dos
últimos 70 anos, lançando a pecha de
insensível, de elitista, em quem se
aventurasse a refutá-la.
Desse modo, muitos preferiram
não só fechar os olhos à corrupção público-privada mas também aos males
dos regimes autoritários ao adotar
uma atitude sintetizada numa frase
atribuída a Getúlio Vargas: "voto não
enche barriga".
O lastimável quadro atual pelo menos abre um espaço maior à crítica a
esse tipo de raciocínio. Em poucas palavras, não se constrói um regime social mais justo sem respeitar os princípios básicos da democracia: a livre
escolha dos governantes, a transparência da ação dos agentes públicos e
dos negócios dos empreendedores
privados, a ampla liberdade dos
meios de comunicação, o direito à informação, a aplicação uniforme da
justiça, sem privilégios de classe ou de
posição social, a consolidação de uma
atitude ética na sociedade e no mundo político.
Alguns caminhos para atingir os
dois objetivos por último enunciados
estão claros à nossa frente. Eles se
compõem de uma combinação de medidas repressivas, reformas institucionais e algo bem mais difícil de alcançar -uma transformação da cultura, no sentido amplo da expressão.
O país avançou no primeiro desses
caminhos. O exemplo mais relevante
encontra-se na ação positiva da Polícia Federal, ao desvendar mais e mais
os tentáculos da corrupção, ao enquadrar peixes graúdos de toda espécie,
despertando protestos que evidenciam ainda mais a importância de sua
atividade.
Isso não significa que o órgão, internamente, esteja isento da praga
corruptora, que concordemos com alguns lances cinematográficos dispensáveis ou que deixemos de sentir um
travo pela inapetência por apurar o
caso da armação de dossiês destinados a prejudicar o então candidato ao
governo de São Paulo José Serra.
Bem mais devagar seguimos no
percurso de outros caminhos, aqueles
que dizem respeito a reformas institucionais. Em todo caso, a pressão da
opinião pública e da fragilizada oposição -apesar de tudo, elas existem-
vem forçando os Poderes da República a cogitar de medidas moralizadoras, como a revisão das normas de elaboração dos Orçamentos, suprimindo as emendas individuais, ou o maior
controle do processo de licitação.
Mas, aqui, uma boa dose de ceticismo não faria mal. Em matéria de Orçamento, por exemplo, giramos em
falso desde os tempos dos "anões",
hoje esquecidos. E é de se perguntar
se um Congresso Nacional tão corporativo, cujos membros são tão propensos aos arranjos "intra corporis",
pode promover reformas administrativas com seriedade.
Quanto ao último dos caminhos
apontados, seus objetivos, por natureza, são alcançáveis somente a longo
prazo. Não se introduz ou se reintroduz, da noite para o dia, princípios éticos básicos, hoje tão esfarrapados. E
isso preocupa porque, sem a interiorização individual e coletiva desses
princípios, tudo o mais, por importante que seja, se sujeita a uma luta
inglória, sempre e sempre reposta.
BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho
Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional)
da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de
30" (Companhia das Letras).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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