São Paulo, quinta-feira, 05 de julho de 2001

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OTAVIO FRIAS FILHO

Incômoda diferença

Um tribunal instalado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em Haia, na Holanda, começou a julgar o ex-ditador iugoslavo Slobodan Milosevic por haver cometido crimes contra a humanidade, assassinatos e deportações em massa durante a campanha militar contra a província de Kosovo, em 1999.
A imagem de Milosevic conduzido por um guarda de presídio ao banco dos réus vem-se somar à dos carrascos nazistas julgados após a Segunda Guerra e, mais recentemente, à do alquebrado Pinochet, símbolo das ditaduras latino-americanas. Do ponto de vista humano, não há como não apoiar a promotoria nesses casos.
A bem-sucedida resistência ao invasor alemão, durante a guerra, permitiu ao marechal Tito unificar um mosaico de povos divididos mais pela religião que pela etnia, destroços de dois grandes impérios, o turco e o austríaco. A ditadura de Tito ocultou as diferenças sob a crença de que eram todos "eslavos do sul".
Na tentativa de integrar a nação que estava forjando, Tito patrocinou migrações internas, ainda que não fossem, ainda, as deportações de Milosevic. Essa política do antigo caudilho comunista acentuou ainda mais o efeito-mosaico da região e ajudou a manter o país sob controle da principal província, a Sérvia.
Com o desmoronar do bloco soviético, de que o regime iugoslavo era independente, mas com o qual tinha óbvia afinidade, o jogo de armar de Tito começou a se desfazer. Milosevic está sob julgamento pela tentativa brutal de expelir a população muçulmana da província de Kosovo, no coração do país.
Do ponto de vista sérvio, o ditador estava empenhado numa guerra pela conservação da integridade de seu país. Estava fazendo o que Lincoln, que os americanos e o mundo reverenciam como seu maior presidente, fez há mais de um século, com a diferença crucial de que Lincoln ganhou a guerra.
Diferença incômoda: por mais monstruosos que sejam esses estadistas agora réus, por mais que no capítulo das barbaridades eles se excedam, sempre se trata de perdedores. Jiang Zemin, o ditador chinês, passeia pelo mundo sem que nenhum juiz mande a polícia prendê-lo, apesar de não faltarem razões para tanto.
Claro que Milosevic não é Lincoln, mas não custa lembrar que este agrediu uma parte de seu país que desejava se desmembrar do todo, negando-lhe esse direito, que estendeu a abolição ao sul para gerar desordem na economia agrária do inimigo e que foi acusado de abusar ditatorialmente dos poderes do cargo.
Na época, não se julgavam governantes; agora julgamos os que caíram em desgraça, o que deve ser um avanço. Mas na transição em curso entre Estado nacional e um ainda imaginário Estado mundial, as brechas servem de controle dos países ricos sobre os demais, chamados, até, de "países-bandidos."


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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