|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OTAVIO FRIAS FILHO
Incômoda diferença
Um tribunal instalado pelo
Conselho de Segurança das Nações Unidas em Haia, na Holanda, começou a julgar o ex-ditador iugoslavo
Slobodan Milosevic por haver cometido crimes contra a humanidade, assassinatos e deportações em massa
durante a campanha militar contra a
província de Kosovo, em 1999.
A imagem de Milosevic conduzido
por um guarda de presídio ao banco
dos réus vem-se somar à dos carrascos
nazistas julgados após a Segunda
Guerra e, mais recentemente, à do alquebrado Pinochet, símbolo das ditaduras latino-americanas. Do ponto de
vista humano, não há como não
apoiar a promotoria nesses casos.
A bem-sucedida resistência ao invasor alemão, durante a guerra, permitiu ao marechal Tito unificar um mosaico de povos divididos mais pela religião que pela etnia, destroços de dois
grandes impérios, o turco e o austríaco. A ditadura de Tito ocultou as diferenças sob a crença de que eram todos
"eslavos do sul".
Na tentativa de integrar a nação que
estava forjando, Tito patrocinou migrações internas, ainda que não fossem, ainda, as deportações de Milosevic. Essa política do antigo caudilho
comunista acentuou ainda mais o
efeito-mosaico da região e ajudou a
manter o país sob controle da principal província, a Sérvia.
Com o desmoronar do bloco soviético, de que o regime iugoslavo era independente, mas com o qual tinha óbvia afinidade, o jogo de armar de Tito
começou a se desfazer. Milosevic está
sob julgamento pela tentativa brutal
de expelir a população muçulmana da
província de Kosovo, no coração do
país.
Do ponto de vista sérvio, o ditador
estava empenhado numa guerra pela
conservação da integridade de seu
país. Estava fazendo o que Lincoln,
que os americanos e o mundo reverenciam como seu maior presidente,
fez há mais de um século, com a diferença crucial de que Lincoln ganhou a
guerra.
Diferença incômoda: por mais
monstruosos que sejam esses estadistas agora réus, por mais que no capítulo das barbaridades eles se excedam,
sempre se trata de perdedores. Jiang
Zemin, o ditador chinês, passeia pelo
mundo sem que nenhum juiz mande
a polícia prendê-lo, apesar de não faltarem razões para tanto.
Claro que Milosevic não é Lincoln,
mas não custa lembrar que este agrediu uma parte de seu país que desejava
se desmembrar do todo, negando-lhe
esse direito, que estendeu a abolição
ao sul para gerar desordem na economia agrária do inimigo e que foi acusado de abusar ditatorialmente dos
poderes do cargo.
Na época, não se julgavam governantes; agora julgamos os que caíram
em desgraça, o que deve ser um avanço. Mas na transição em curso entre
Estado nacional e um ainda imaginário Estado mundial, as brechas servem
de controle dos países ricos sobre os
demais, chamados, até, de "países-bandidos."
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Legados e prêmios Próximo Texto: Frases
Índice
|