São Paulo, quinta-feira, 05 de julho de 2001

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Sofrimento público e cidadania passiva

CANDIDO MENDES


Doce Brasil, que não pergunta e que cumpre o bom silêncio ovino; o racionamento absorve e apaga a crise ética


Como já vai longe a crise do Senado, diante do quadro de mobilização nacional que já nos impõe o vergaste do racionamento. Uma catástrofe com responsáveis contundentemente assumidos na confissão inédita do descuido presidencial. Alerta também imprevisível do povo bom, que se dobra ao inaudito, predisposto ao mutirão.
Eis a sociedade, por inteiro, a cortar-se na carne, na luz. Entrega-se o Brasil ao sacrifício quase prazeroso, que cumpre e não discute, lápis vermelho sobre a conta de luz, olho no freezer. Não inquietam as potestades o porquê e o "até quando" do tempo de vacas magras que ora se inicia. Nem a oposição já se preocupou em tirar partido do preço trágico de nossas liquidezes econômicas neoliberais. Corte o investimento em usinas, desde que os juros corram a fio d'água aos estuários da nossa liquidez internacional. Não são os ministros da Energia os responsáveis -seria tão fácil ao sistema demonizar o quinhão dos carlistas no governo FH-, mas as autoridades fazendárias. E a apontar a uma cabeça precisa. Ela continua sobre os ombros do ministro do Planejamento, Martus Tavares, pondo debaixo do tapete tudo que fizesse mossa, nas despesas públicas, aos números luzidios da nossa performance monetária, sob o pincenê das autoridades do FMI.
Antes do jugo do apagão, aí estão todas as tribos do Pindorama a compor-se nas filas do sacrifício e no corte do orçamento doméstico. Eis o Brasil sem tugir nem mugir, numa avocação atávica para o conformismo com a natureza, tão dadivosa, e com o governo, que a substitui no sobressalto contumaz.
Sem levantar o cerviz nem olhar para os lados, repartamos as quotas do incômodo, sem que por um instante engrosse a sociedade civil as perguntas que caracterizariam o mínimo de uma cidadania ativa: como chegamos a isso e quem são os responsáveis? Quando vamos sair do transtorno e a que custo?
Não se trata apenas de não saber até quando irá o flagelo e que medidas o príncipe tem em mente, para além de fustigar o fundo seco das barragens, clamando pelas chuvas, como Xerxes chibateou o oceano que destroçara as suas naus contra os gregos. Continuamos, pelo fio de um voto, a depender da abertura do inquérito do armagedon contra a corrupção no Senado. Mas não há até agora a informação do que seria, em aluvião, o questionamento ao Executivo do "até quando" da crise. Doce Brasil, que não pergunta e que cumpre o bom silêncio ovino, que também não cobrou de um governo social-democrata o princípio elementar, nas condições de crise, em que um tucanato pode, de vez, mostrar que não dá a mão à palmatória, com a consciência de culpa neoliberal.
Não se trouxe à opinião pública a colossal distância, na queima de quilowatts, entre o que queima pingo de lâmpada na favela e o que torra o gasto de força no nosso parque industrial.
Uma pequena contenção a mais nos distritos industriais liberaria, talvez por completo, o gasto da pobreza. Um apagão seletivo, para nosso espanto, não foi até agora considerado. Nem a conta do quanto uma produção a mais, estocada para o Natal, implica quantos cortes de luz no Brasil, que come, toma banho, assiste à TV, tem direito à geladeira e à iluminação pública. Tem o povo, que não discute o seu sacrifício, a noção das responsabilidades desigualíssimas entre gasto de energia domiciliar e industrial? E, dentro dela, a da diferença abissal, para efeito de um racionamento, entre o que gasta uma olaria ou uma indústria de alumínio? A justiça social se faz, sim, de dois pesos e duas medidas.
E a democratização do horror não se faz sem que tenha o Pindorama a noção do custo da energia. O presidente passou o teste da descrença e da rebeldia popular ao chamar a si a total responsabilidade pelo desmando que horrorizaria Maquiavel.
O racionamento absorve e apaga a crise ética, pondo-nos diante de um novo tabuleiro na troca de sacrifícios nacionais sem vantagens à vista que permitam o sacrifício lúcido. Vamos mesmo, de tonta e comovente cegueira, a tudo que nos peça o príncipe. Alguns sociólogos invocariam no caso os paradoxos da servidão voluntária, que podem até, afinal, criar nova solidariedade com o presidente desafortunado.
No extremo oposto, quando do confisco inaudito do governo Collor, perguntaríamos se a sociedade americana, por exemplo, teria aceito, com seu culto à poupança e à defesa selvagem da propriedade privada, a violência sobre os depósitos brasileiros sem uma indiscutível e irreprimível comoção popular.
Bom o nosso povo, que nos dá essa aula de consciência cívica, pedida pelo édito do príncipe, convocando a marcha cega do racionamento, sem justificação nem consolo, a pagar o erro confessado dos governantes. Encham-nos os síndicos das suas circulares e tornemo-nos todos espiões do vizinho: a vilegiatura do medo pode corroer o sacrifício da nossa generosidade instintiva. Para nossa desgraça, já passamos o momento da cidadania ativa.
Não perguntamos, não interpelamos, não cobramos e temos de adiar o apagão democrático, se acontecer. Já perdemos o momento de perguntar ao sistema o que houve, quando e por quê.
Continuamos o país da desmemória, mesmo se quisermos deixar de ser a nação da paciência.


Candido Mendes, 73, é presidente do "senior board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco e membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz.



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