São Paulo, sábado, 05 de julho de 2008

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GUSTAVO FRANCO

Sobre lagartixas e dragões

AS PESSOAS estão exageradamente assustadas com a inflação, a começar pelo ministro da Fazenda, e isso é muito bom.
Felizmente, exatos 14 anos depois do Plano Real, a memória do flagelo da hiperinflação permanece viva, ainda que embaçada. Sabe-se que foi uma tragédia, mas apenas os maiores de 32 anos tiveram a chance de ver, já maiores de idade, a criatura caminhar sobre território brasileiro. Na verdade, aqui esteve durante vários anos, quando foi alimentada por idéias de economistas heterodoxos, como estes que estão aboletados no Ipea, e tratada com banhos frios, feitiços e confiscos, às vezes mais danosos que o mal que a criatura nos causava.
A inflação acumulada em 12 meses até junho de 1994, medida pelo IPCA, atingiu 6.432,7%. Vale refletir sobre a grandeza desse número. Em junho de 1994, a inflação foi de 50% no mês, que equivalem a 12.875% anuais, ou cerca de 2% por dia útil. A meta de inflação para 2007 seria a inflação de um simples fim de semana, naqueles tempos loucos. Um feriadão já seria suficiente para estourar a meta.
Mas a criatura desapareceu em julho de 1994. No ano calendário de 1997, a inflação foi de 5,2%, e em 1998 chegamos a 1,6% para o ano inteiro, nossa melhor marca. Vida se assentou, especialmente depois dos sacolejos de 1999, 2002 e 2004, que abriram várias tumbas, e expuseram diversos esqueletos que, afinal, não saíram andando e devorando as pessoas, como alguns temiam.
Diante da excitação das últimas semanas em torno da aceleração da inflação de 4,5% anuais para 6,0% anuais, a primeira impressão, entre os mais velhos, é a de estamos lidando com lagartixas e não com dinossauros.
A presunção, talvez inocente, é de que esses não são fabricados a partir daquelas, mas os maiores de 50 anos sabem que a exposição prolongada a doses regulares de idéias econômicas radioativas podem metamorfosear animais frágeis em serpentes, que depois viram dragões. Não é muito provável, é claro, e, por isso mesmo, o ministro da Fazenda tem razão em dizer que não há motivo para pânico. Entretanto, esse tipo de desmentido é uma espécie de contradição em termos: se é preciso que o ministro diga algo assim, é por que há motivo para pânico.
E o motivo é muito simples: o ministro, e com ele o governo, não mostra nenhuma convicção de que o problema da inflação tem como causa a política fiscal, o mesmo velho problema. Para não repetir Milton Friedman sobre refeições gratuitas, vale lembrar Machado de Assis, no mesmo espírito: não se pode ir à Glória sem pagar o bonde.

gh.franco@uol.com.br


GUSTAVO FRANCO escreve aos sábados nesta coluna.


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