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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O mistério da massa

ROGÉRIO ROSENFELD

Apesar do título, este não é um artigo de culinária. Abordarei aqui uma questão profunda, a origem da massa.
Mas o que significa massa?
Quando subimos em uma balança, medimos nosso peso, que é o resultado da força gravitacional da Terra sobre nosso corpo. Uma propaganda com o mote "perca peso, vá à Lua" estaria correta, mas certamente não é esse nosso objetivo quando fazemos uma dieta.
A massa de um corpo é uma propriedade intrínseca e não importa se a medirmos aqui ou em Plutão, seu valor será sempre o mesmo. Podemos medi-la usando a Segunda Lei de Newton, a famosa F = ma, que relaciona uma força (F) aplicada a um corpo de massa (m) com a aceleração (a) resultante. Para uma mesma força aplicada, a aceleração de um corpo será tanto menor quanto maior for sua massa. Com o mesmo empurrão, é mais fácil mover um cachorro do que um elefante. Portanto a massa de um corpo está relacionada à sua inércia, ou seja, à dificuldade em colocar esse corpo em movimento.
No nosso universo existe uma diversidade enorme de escalas de massa. Uma pessoa possui tipicamente uma massa da ordem de 100 kg. Nosso planeta tem uma massa de cerca de 10 trilhões de trilhões (o número 1 seguido de 25 zeros) kg. O Sol tem uma massa aproximadamente 1 milhão de vezes maior que a da Terra. Indo na outra direção, uma uva tem uma massa da ordem de 0,003 kg, um vírus tem 1 bilionésimo de quilo e assim por diante.
Mas de onde vem essa massa?
Nós somos feitos de átomos, e os átomos são feitos de partículas como prótons, nêutrons e elétrons. No fim das contas, de uma maneira reducionista, para entendermos a origem de nossa massa, precisamos entender a origem da massa das partículas elementares, dos tijolos fundamentais que nos formam. Esse é o mistério a que me referi.


Para entendermos a origem de nossa massa, precisamos entender a origem da massa das partículas elementares


Existe uma teoria sobre a origem da massa das partículas elementares desenvolvida nas últimas quatro décadas. Essa teoria pode ser explicada de maneira extremamente simplificada, com a seguinte analogia: imagine seres aquáticos confinados, que nasceram e cresceram em um mundo totalmente submerso em água e onde não exista a força gravitacional. Eles sentem uma dificuldade maior para empurrar objetos devido à presença da água. Agora pense na dificuldade que temos em nos mover dentro de uma piscina. Assim percebe-se que a "massa" de corpos que esses seres medem, usando a Segunda Lei de Newton, seria, de fato, maior do que suas massas caso não houvesse água. Caso esse mundo imaginário fosse totalmente submerso em mel, a "massa" medida seria ainda maior, pois o mel é muito mais viscoso que a água.
Nossa teoria pressupõe que estejamos imersos em um meio absolutamente homogêneo, denominado vácuo do campo de Higgs -nome dado em homenagem ao escocês Peter Higgs, um dos físicos que propuseram esse modelo na década de 1960. As partículas elementares sofreriam uma espécie de atrito ao se moverem nesse meio. Suas massas seriam provenientes desse atrito. Nessa teoria, partículas elementares têm massas diferentes porque estão sujeitas a atritos diferentes com o campo de Higgs. As partículas de luz, denominadas fótons, não têm atrito nenhum e, portanto, não possuem massa. Já os elétrons adquirem massa porque sofrem esse atrito. Para prótons e nêutrons, que são partículas compostas de partículas elementares denominadas quarks e glúons, a situação é mais complexa.
Porém não adianta termos uma teoria se não pudermos testá-la experimentalmente. Na analogia com o mundo subaquático, um ser em repouso não perceberia a existência da água. Uma maneira de comprovar sua presença seria fazer uma onda -balançando a água, por exemplo. Isso exigiria um certo esforço, que requer o uso de energia, o qual seria muito maior no caso do mel. Os seres imaginários sentiriam essa onda passando por eles, provocando seu deslocamento temporário. No caso do campo de Higgs, temos de fazer algo parecido, dar uma "balançada" no campo para gerar uma onda.
Em física quântica, ondas podem ser interpretadas como partículas. Essa onda do campo de Higgs é representada por uma nova partícula, o chamado bóson de Higgs. Essa partícula de Higgs é a chave para entendermos a origem da massa. Contudo não é nada fácil balançar o campo de Higgs. É necessária uma imensa concentração de energia em uma região minúscula, quase um ponto. Esse feito pode ser realizado com a ajuda de enormes instrumentos, chamados aceleradores de partículas. Como o nome indica, nesses instrumentos, feixes de partículas são acelerados a velocidades próximas à da luz e postos a colidir frontalmente. Essas colisões podem acabar produzindo o bóson de Higgs.
A procura da partícula de Higgs é a prioridade número um nas experiências em aceleradores de partículas. Um novo acelerador, que iniciará suas atividades em 2007, em Genebra, deverá testar definitivamente essa teoria sobre a origem da massa. Bilhões de dólares são gastos nesse esforço. A recompensa, além dos eventuais desenvolvimentos tecnológicos que sempre ocorrem nesse tipo de empreendimento, é um conhecimento mais profundo de como funciona a natureza, uma grande contribuição para o patrimônio cultural da humanidade.

Rogério Rosenfeld, 40, físico, doutor pela Universidade de Chicago, é professor livre-docente e vice-diretor do Instituto de Física Teórica da Unesp. É autor do livro "Feynman & Gell-Mann: Luz, Quarks, Ação" (ed. Odysseus).


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