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São Paulo, quarta-feira, 05 de novembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Tanta Rachel

RIO DE JANEIRO - Há 73 anos, uma gráfica provinciana publicava o primeiro livro de uma jovem, edição particular, paga pela própria autora. "Descreva bem a sua aldeia e descreverás o mundo", aconselhava um romancista russo. A jovem de 19 anos, isolada no sertão cearense, não conhecia a frase. Mesmo assim, na capa de seus originais escreveu simplesmente "O Quinze", referindo-se à maneira nordestina ao ano de 1915 e, por extensão, à seca daquele ano. A seca que invadiu seu romance e, em seguida, a literatura nacional.
O ciclo regionalista, que se constituiria num do mais fecundos do Brasil, teria seu começo, em conteúdo e forma, naquele pequeno grande romance da professora cearense de 19 anos.
"O Quinze" não fez sucesso na crítica cearense, mas estourou no Rio e em São Paulo. Augusto Frederico Schmidt deu um salto à frente de sua época e dedicou ao romance famoso artigo.
A história é conhecida: Rachel não ficou na promessa e foi à luta. Publicou novos romances ("João Miguel", "Caminho de Pedras", "As Três Marias", "Dôra, Doralina", "Memorial de Maria Moura"), tornou-se cronista, fez teatro. Em conjunto, uma obra de consistência clara, atuante, sedimentada numa dignidade que se tornou um dos raros consensos nacionais. Em poema bastante badalado, Manuel Bandeira chamou-a de "nata e flor do nosso povo" e louvou o seu amor de tia. Outros preferem chamá-la de "madrinha" -e, em certo sentido, ela é realmente uma espécie de madrinha de todos os que escrevem neste país.
Basta uma releitura de "O Quinze" para sentir a segurança com que a moça de 19 anos, num distante Ceará que só nos chegava pelos itas do norte, invadiu o cenário e a literatura do Brasil. Seu estilo é enxuto, sem bordados. "Passava quase todo o dia na estação, alegre como uma feira, cheia de gente como uma missa".
O que difere Rachel de seus irmãos regionalistas (Zé Lins, Graciliano e Jorge Amado) é uma certa penumbra machadiana: "Tanta fome, tanta sede, tanto sol". Tanta Rachel.


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