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São Paulo, quarta-feira, 05 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Direito de ser sócio do Brasil

EDUARDO MATARAZZO SUPLICY

Antônio Ermírio de Moraes, o maior empresário brasileiro, disse, a respeito do Fome Zero, que "ninguém quer viver de esmola" e que o país precisaria mesmo é de um "Programa Desemprego Zero". Justamente quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou o Programa Bolsa-Família, que unifica os programas de transferência de renda Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Cartão-Alimentação e Auxílio-Gás.
Antônio Ermírio disse que "o brasileiro tem boa formação moral e ninguém gosta de receber esmola" e que "as pessoas têm muita satisfação em trabalhar e receber aquilo que merecem". Concluiu que o programa "não é bom, porque vicia a população na coisa errada. O sujeito precisa lutar, trabalhar para sobreviver".
Nesse dia, Antônio Ermírio comemorou a expansão da Companhia Brasileira de Alumínio, da Votorantim, que envolveu investimentos de US$ 370 milhões, gerando 400 empregos diretos e 1.600 indiretos. Ressaltou a empresa que 70% dos investimentos foram com recursos da própria CBA. A Votorantim, como quase todos os grupos nacionais, teve ao longo de sua história um vigoroso apoio do poder público, sobretudo através de empréstimos do BNDES, que são realizados a taxas de juros menores do que as normalmente cobradas pelas instituições privadas. Isso se torna viável porque os recursos do BNDES são em grande parte do Fundo de Amparo ao Trabalhador.
As observações de Antônio Ermírio guardam relação com as palavras do presidente Lula. No lançamento do Bolsa-Família, disse nunca se esquecer das palavras de Luiz Gonzaga: "Uma esmola a um homem que é são ou lhe mata de vergonha, ou vicia o cidadão". Ressaltou também "que todo mundo sente orgulho em fazer por merecer". Na campanha presidencial, foram inúmeras as vezes em que Lula relembrou o episódio em que havia perdido o emprego.
O que Antônio Ermírio precisa compreender, e que o presidente Lula já fez, é que todos os brasileiros, e não apenas os clientes do BNDES, têm o direito inalienável de serem sócios do Brasil. Como empresário de larga visão, Antônio Ermírio tem a responsabilidade de perceber que os países desenvolvidos têm inúmeros programas de transferência de renda que tornam as suas economias mais competitivas em relação à nossa, se não instituirmos um programa com um desenho bem feito. Os EUA, por exemplo, estão destinando neste ano US$ 35 bilhões, na forma de crédito fiscal por remuneração recebida, aos trabalhadores cuja renda não atinge determinado patamar. Quase todos os países da União Européia têm programas de transferência de renda.


A decisão de unificar os programas de transferência de renda é um passo correto do presidente Lula

A decisão de unificar os programas de transferência de renda é um passo correto do presidente Lula. Trata-se de simplificar e racionalizar o sistema. Às famílias com renda mensal de até R$ 100 per capita, será assegurado um complemento de renda de pelo menos R$ 50, mais R$ 15, R$ 30 ou R$ 45, se a família tiver, respectivamente, uma, duas, três ou mais crianças. Como contrapartida da Bolsa-Família, deverão os pais demonstrar que as crianças estão sendo vacinadas, que o seu grau de nutrição é acompanhado pelos postos de saúde, que estão frequentando a escola e os próprios pais realizando algum curso de alfabetização ou capacitação.
A minha recomendação ao presidente Lula e à coordenadora do programa, Ana Fonseca, é que examinem com atenção em que extensão estarão presentes as chamadas armadilhas do desemprego ou da pobreza que são debatidas na literatura sobre o tema. Os maiores estudiosos da matéria recomendam que cheguemos gradualmente à instituição de uma renda básica de cidadania, uma modesta renda, suficiente para atender as necessidades de sobrevivência de cada pessoa, paga igualmente a todos, não importa a sua origem, raça, idade, sexo, condição civil ou mesmo socioeconômica.
Mas como? Então vamos pagar até para o Antônio Ermírio? Sim. Ele e todos que não precisariam vão colaborar para que eles próprios e todos os demais venham a receber. Dessa maneira, ninguém ficará excluído. Será o modo de efetivamente atingirmos todos os mais pobres. Pois não precisará cada pessoa declarar, para fins de receber a renda de cidadania, quanto ganha. Eliminaremos qualquer sentimento de estigma ou vergonha de a pessoa ter de dizer "eu só recebo tanto, e por isso mereço receber tal complemento".
Mais importante, do ponto de vista da dignidade e da liberdade do ser humano, será muito melhor para cada pessoa saber de antemão que nos próximos 12 meses e, daí para a frente, a cada ano cada vez mais, com o progresso do país, ela e cada um na sua família receberão uma modesta renda como direito de participar da riqueza do Brasil.
Será que a renda de cidadania vai viciar o cidadão? Antônio Ermírio teve o direito de receber os rendimentos provenientes do acúmulo de capital proporcionado pelos empreendimentos de seu pai sem ter a obrigação de trabalhar e, mesmo assim, resolveu sempre estudar nas melhores escolas e muito trabalhar, sem ter se viciado. Da mesma maneira, todo brasileiro que receber a renda de cidadania terá o estímulo para estudar, trabalhar e progredir.
Tenho a convicção de que, pela seriedade com que tem se dedicado aos problemas brasileiros, Antônio Ermírio, ao estudar em maior profundidade a proposição, ficará convencido, como muitos laureados com o Nobel de Economia, a exemplo de James Edward Meade e James Tobin, de que a renda básica de cidadania será também o instrumento eficiente para chegarmos ao objetivo importante do desemprego zero.

Eduardo Matarazzo Suplicy, 62, doutor em economia pela Universidade Estadual de Michigan (EUA), senador pelo PT-SP, é professor da Eaesp-FGV.


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