São Paulo, sexta-feira, 05 de novembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Fetiches ideológicos

CARLOS LESSA

O BNDES tem sido alvo de ataques relacionados com a suposta ineficiência na aprovação de projetos ou com a também suposta disfuncionalidade de sua base financeira, apoiada sobretudo no Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). No primeiro caso, trata-se de alegação totalmente infundada. No segundo, explicita-se uma operação visando a que os bancos privados se apropriem da gestão de recursos dos bancos públicos.
Não pretendo fazer uma defesa extensiva da eficiência do BNDES. Muita coisa pode ser melhorada. Entretanto não é por causa de seus defeitos que o banco vem sendo atacado, mas em função de suas virtudes.
Em menos de dois anos recuperamos importantes operações que diretorias anteriores realizaram sem os cuidados devidos, entre as quais a mais emblemática foi a da AES. Essa recuperação nos levou a ter em 2003 o maior lucro nominal do banco. Agora, estamos executando um orçamento recorde para 2004, com novos lucros robustos. Ampliamos expressivamente os empréstimos para micro, pequenas e médias empresas, viabilizando inclusive suas exportações, e tornamos operacional o Cartão BNDES, que lhes oferece crédito rotativo para a compra de equipamentos.
Só no segmento das grandes empresas é que não estamos aprovando tantas operações no ritmo que gostaríamos. Mas isso não é culpa do banco. Se as grandes empresas não apresentam propostas para novos investimentos, ao BNDES pouco cabe fazer. Não pode, por exemplo, coagi-las a investir, embora esteja sempre criando novos programas de fomento, acessíveis a empresas de todos os portes.


Fala-se em retirar do BNDES os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador e leiloá-los entre os bancos privados


O que me deixa mais apreensivo, porém, não são esses ataques, mas uma espécie de conspiração que se forma a partir de consultorias privadas e "acadêmicos-banqueiros", com a cooperação de alguns ex-presidentes do próprio BNDES, visando desmantelar o banco em seu reposicionamento como principal vetor do desenvolvimento nacional. Fala-se abertamente em retirar do BNDES os recursos do FAT e leiloá-los entre os bancos privados, a pretexto de "democratizar" o crédito e "reduzir" a taxa de juros ao tomador final. Fala-se que manter em nível baixo a taxa de juros de longo prazo obriga o Banco Central a aumentar a Selic. Fala-se que o crédito público relativamente barato força o aumento do custo do crédito nas faixas livres; logo, com juros devastadores, pune pessoas físicas e jurídicas.
Tudo isso são fetiches ideológicos que escondem a intenção de desmontar o sistema de crédito público, destruindo a capacidade do governo de realizar política de financiamento, política industrial e política de desenvolvimento. Seria o coroamento do projeto neoliberal implementado no governo anterior -do qual teve de recuar quando chegou o momento de privatizar as grandes instituições financeiras (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES), apesar do estudo Booz Allen, que custou milhões de dólares.
Claramente, forças poderosas se movem agora para pressionar o governo Lula a fazer o que Fernando Henrique Cardoso deixou incompleto. Minha expectativa é que o sistema produtivo brasileiro e as forças políticas que o representam se dêem conta do ataque contra sua própria base de sobrevivência e expansão, que são os bancos públicos. Não há nisso nenhuma hostilidade ao sistema bancário privado. Entre os maiores banqueiros temos alguns comprometidos com o papel de financiar a produção e dar suporte ao crescimento econômico, numa profícua divisão de papéis com os bancos públicos. Nossas diferenças são com os ideólogos privatistas, que, a partir de modelos abstratos, querem destruir instrumentos públicos que funcionam com eficácia quando acionados para um programa de desenvolvimento de um governo eleito democraticamente.
Como base de financiamento a longo prazo, o FAT é o principal instrumento financeiro do BNDES, que assim se tornou um dos maiores bancos de desenvolvimento do mundo. O desvio do governo anterior, que tentou reduzir o BNDES a um banco de investimento com critérios privados, foi revertido nesta administração, por decisão do presidente Lula, que tem dado todas as demonstrações de que vamos nos manter na trilha desenvolvimentista, para enfrentar a herança dos gigantescos problemas de renda e de emprego.
Muita coisa se fez com descuido no governo anterior, inclusive algumas privatizações que acabaram ferindo o interesse nacional. A principal razão foi o domínio absoluto do pensamento único. Alguns ideólogos avançados do neoliberalismo faziam os primeiros movimentos e todos corriam para amplificá-lo. O que vemos agora, em relação ao BNDES e aos demais bancos públicos, são as primeiras manifestações de nova ofensiva desse estilo. Entretanto seus promotores estão muito enganados se pensam que vamos assistir calados a essa nova tentativa de pilhagem de recursos públicos no contexto de um governo popular que surgiu das massas, e não do conluio de elites.

Carlos Lessa, 68, economista, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ, é o presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Foi reitor da UFRJ em 2002.


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