São Paulo, sexta-feira, 05 de novembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A vitória do santo guerreiro

BORIS FAUSTO

No calor da hora, tento ajudar a responder a uma pergunta: por que Bush venceu?
Como é óbvio, por um conjunto de razões, mas há algumas que são mais importantes do que outras.
Quando as eleições deste novembro eram ainda relativamente distantes, muitos analistas acreditaram que a conjuntura econômica seria um fator decisivo na escolha do eleitorado americano. Nessa linha, discutia-se se a recuperação seguia um curso sustentado, se contribuiria para aumentar ou não as oportunidades de emprego etc. Os fatos se encarregaram de colocar as questões da economia em segundo plano, embora elas tenham aparecido na campanha dos dois candidatos, pela via de discussões abstratas para os eleitores, como é o caso do déficit das contas públicas, e de outras bem concretas, como o corte de impostos.
Mas o que prevaleceu foi o tema da ameaça terrorista e a transformação da luta contra o terror em guerra contra um inimigo oculto, capaz, como se viu, de golpear na sombra, em qualquer lugar do mundo e no coração dos Estados Unidos. Esse sentimento não se gerou espontaneamente. Foi despertado pelo governo Bush, por meio de uma enfática pregação e pressões de toda ordem, com o apoio de uma mídia convencida ou atemorizada. Mais ainda, a definição da luta contra o terrorismo como guerra acabou justificando uma verdadeira guerra, no Afeganistão e no Iraque.
A partir daí, a figura do presidente emergiu como a de um comandante inflexível e determinado. Em contraste, o senador Kerry acabou corporificando as sinuosidades dos democratas, com seu apoio à Guerra do Iraque, num primeiro momento, e as ressalvas depois, quando a suposta implantação da democracia iraquiana, com flores e abraços, converteu-se num beco sem saída.


Os eleitores de um país de cultura tida como extremamente utilitária decidiram segundo critérios valorativos e morais


É certo que a transformação de Bush em líder de uma nação em guerra foi muito facilitada pelo solo fértil em que se plantou a semente ideológica. Um misto de credulidade nos governos e de ignorância política, por parte de uma parcela muito ponderável da população americana, contribuiu para o êxito dessa operação. Foi inútil desmascarar o principal pretexto da Guerra do Iraque -o suposto risco das armas de destruição em massa. Foi inútil demonstrar que, se Saddam Hussein era um ditador sangrento, nada tinha a ver com os grupos terroristas. Foi inútil mostrar cenas de tortura contra prisioneiros -um instrumento com cuja utilização, em tempos de guerra, muita gente concorda. E foi útil, ao contrário do que se poderia imaginar, exibir as cenas das mortes de soldados americanos, no sentido de reforçar a idéia de que a nação necessitava de um comandante como o presidente Bush.
Em poucas palavras, milhões aceitaram, confortados, a simplificação do cenário internacional que lhes era fornecida, incorporando a idéia da divisão do mundo segundo a fórmula do bem e do mal, avessa às análises mais complexas dos malsinados intelectuais liberais. E, às vésperas da eleição, Bin Laden veio dar sua contribuição para a vitória de Bush; o mesmo Bin Laden que o salvara do desprestígio, com o ataque terrorista do 11 de Setembro. Na tela das televisões surgiu a encarnação do inimigo e sua inusitada fala eleitoral, que o converteu em ator político e, mais uma vez, em um trunfo para a direita. Mais significativa do que a relembrança do fracasso das tentativas de capturar Bin Laden "vivo ou morto" foi a certeza de que ele continuava vivo, como uma encarnação do mal supremo, invadindo, visualmente, os lares americanos.
Além da operação de guerra, outro fator decisivo da vitória de Bush diz respeito aos princípios e valores morais, potenciados pelo discurso religioso. Sob esse aspecto, o eco que despertou a mobilização pelo voto, no curso da campanha, engendrou equívocos. A mobilização parecia representar um indicador do êxito dos democratas, como se a direita fosse incapaz de se mobilizar com grande eficiência. Temas como o direito à vida em qualquer circunstância -com a conseqüente condenação do aborto ou da utilização das células-tronco- e a preservação da família e do casamento na sua forma tradicional foram explorados pela direita republicana e, mais do que explorados, bem manipulados. Exemplificando, como ressaltaram os enviados especiais desta Folha, em 11 Estados a votação de Bush foi impulsionada por milhões de eleitores que derrubaram, em plebiscitos, a permissão do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
As eleições mostraram que os eleitores de um país de cultura tida como extremamente utilitária decidiram, sobretudo, segundo critérios definidos pelos dilemas da nação em guerra e critérios valorativos e morais. Se é verdade que a vitória de Bush marcou uma expressiva vitória da onda conservadora de longo curso, não é menos verdade que nem tudo vai nessa direção.
Não obstante os tradicionais apelos a "curar feridas" e ao entendimento, a sociedade americana continuará dividida, com conseqüências impossíveis de prever num espaço de tempo mais amplo, não obstante o desalento dos dias que correm.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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