São Paulo, segunda-feira, 05 de novembro de 2007

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Genética, confidencialidade e ética

VOLNEI GARRAFA


Os testes preditivos vão além dos procedimentos médicos. Os problemas sociais são reduzidos às dimensões biológicas


O DOMÍNIO de técnicas relacionadas com o melhor conhecimento do DNA possibilitou o diagnóstico pré-natal de problemas genéticos e a identificação dos portadores de genes sadios que podem dar origem a crianças com doença genética. Se, por um lado, esses testes antecipados permitem o aconselhamento a casais que correm o risco de gerar um filho deficiente, por outro, criam uma série de questionamentos éticos, desde a indicação de um "aborto terapêutico" até a limitação de um cidadão na sua atividade laboral.
Algumas doenças relacionadas com mutações genéticas, como a betatalassemia (uma forma de anemia hereditária) ou a anemia falciforme, são exemplos positivos de como testes confiáveis, simples e baratos podem trazer bons resultados. O que não se pode é generalizar, seja no que se refere a testes de aplicação individual ou coletiva, seja no período pré-natal ou na idade adulta.
O perigo está na transformação do risco genético na própria doença. As chamadas "doenças genéticas", em sua maioria, são conhecidas por terem parte de suas causas ligadas ao ambiente, desde cânceres e diabetes até afecções cardíacas e anemias.
De modo geral, o termo vem representando, nos meios médicos, uma escolha que superestima o fator genético e subestima as implicações externas. Mas são raras as doenças em que o gene, isoladamente, desenvolve a patologia de modo implacável (como a doença de Huntington, que ataca o sistema nervoso). Trata-se, portanto, de uma decisão com relação a "valores", além de uma análise adequada do que é ou não "normalidade".
Um exemplo paradigmático é o uso de testes genéticos no cotidiano. Questões como aborto passam a ser colocadas não somente nos casos de malformações mas também de anomalias cromossômicas.
Para os adultos, surge a questão da notificação do defeito genético. Ela deve ser feita somente ao indivíduo portador de genes "ruins" ou também a sua família? Nos Estados Unidos, as conseqüências já ganharam complexidade social: não só empregadores e seguradoras mas também escolas e cortes de Justiça buscam respostas eficazes, com custos mais baixos e menores riscos. Usam, cada vez mais, a técnica dos testes.
Assim, os testes preditivos vão além dos procedimentos médicos e criam verdadeiras categorias sociais, empurrando o indivíduo para quadros estatísticos. Os problemas sociais são reduzidos às dimensões biológicas. As doenças mentais, a homossexualidade, o gênio violento ou o próprio sucesso no trabalho são -de forma reducionista- atribuídos à genética. As dificuldades escolares -antes explicadas pelas desigualdades culturais ou nutricionais- são imputadas a desordens psíquicas de origem genética.
Seguradoras ameaçam não cobrir as despesas médicas de uma criança cuja mãe tenha sido alertada de que um dia o filho seria vítima de problema genético. Entre números, estatísticas e exames, os empregadores se valem de testes para previsões orçamentárias de longo prazo. O indivíduo-cidadão é desconsiderado em detrimento dos pacientes coletivos da nova medicina.
Mesmo na ausência de sintomas, o risco é endeusado como a própria doença. Já existem registros de recusas para a concessão de empregos, para a obtenção de carteira de motorista ou para a inscrição no seguro-saúde.
Apesar de toda a argumentação relacionada a abusos dos testes preditivos, não é minha intenção assumir posição fechada sobre o assunto -favorável ou contrária-, mas alertar para os perigos da radicalização irracional da técnica.
A força da ciência está em apresentar-se como uma lógica utópica de libertação. Tudo isso deveria desaconselhar tentativas de impor uma ética autoritária, alheia ao progresso. Deveria induzir-nos a evitar formulações de regras jurídicas estabelecidas sobre proibições. É preferível que os vínculos sejam expressos positivamente e que seja estimulada uma moral autógena.
Em outras palavras, é necessário que não se despreze a contribuição dos que vivem a dinâmica da ciência e da técnica, mas sem delegar a eles decisões que dizem respeito a todos.
O controle sobre qualquer atividade de interesse público e coletivo a ser desenvolvido deve ser social. No caso da bioética e da genética, a pluriparticipação é indispensável para a garantia do processo. O controle social deverá prevenir o difícil problema de um progresso científico e tecnológico que reduz cidadão a súdito, em vez de emancipá-lo. A ética é um dos melhores antídotos contra qualquer forma de autoritarismo e tentativa de manipulação.


VOLNEI GARRAFA é professor titular e coordenador da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília, editor-chefe da "Revista Brasileira de Bioética" e presidente da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da Unesco.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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