São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2010

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LULIE MACEDO

Lady Gaga e o soldado

O "Cablegate", como está sendo chamado o maior vazamento de dados da história, fermentou o debate sobre privacidade na era digital.
Não que a discussão seja nova. Mas assistir a mais de 250 mil documentos diplomáticos serem escancarados em URL pública fez pensar no quanto nós, dependentes de e-mails, tuiteiros ou habitantes do Facebook, estamos seguros sob nossos avatares.
Com exceção de algum espião ou hacker, o leitor obviamente não armazena em sua correspondência eletrônica relatos tão banais quanto secretos sobre governos ou terroristas. No máximo tem nas costas uma foto vexatória em noite de embriaguez, que o amigo indiscreto fez questão de publicar no Orkut.
Assuntos privados de governos e a privacidade de pessoas não são a mesma coisa, naturalmente. Mas é fato que a extensão digital de todos nós tem sido armazenada, em maior ou menor escala, em redes que às vezes se mostram tão impenetráveis quanto um parangolé de Helio Oiticica.
Não fosse assim, dificilmente os "cables" (telegramas) da diplomacia americana teriam sido extraídos de um sistema militar secreto por um jovem soldado disfarçado de fã de Lady Gaga.
Bradley Manning, um ex-analista do Exército de 22 anos, é acusado de ter copiado os documentos sigilosos e os enviado para Julian Assange, criador do site WikiLeaks. Até aí, o enredo é de um suspense tecnológico. O que nos coloca dentro do filme é como Manning passou de internauta a prisioneiro militar.
Numa troca de mensagens com o hacker Adrian Lamo, o soldado teria feito o que todos andamos fazendo on-line: abriu sua intimidade. "Eu chegava com músicas num CD da Lady Gaga e as apagava. Então gravava um arquivo comprimido dividido em partes...
[Eu] ouvia "Telephone" [hit da cantora] e mexia os lábios, enquanto extraía possivelmente o maior vazamento de dados da história dos Estados Unidos." A confissão, publicada pela revista "Wired", teria sido feita em um bate-papo virtual com Lamo, que depois entregou o diálogo (e o soldado) às autoridades.
É pouco provável que, se vazados, nossos registros digitais estremeçam o planeta. A vida digital pode implicar (às vezes facilitar) armadilhas financeiras, pedofilia, "bullying", vergonha alheia. A lista é longa. Mas não muito diferente da vida off-line.
Se aqui fora nossos superegos funcionam e ninguém sai por aí contando que chupou uma mexerica ou acabou de ir ao banheiro, por que ainda não aprendemos a educar nossos avatares?
Não é o caso de coibir a espontaneidade digital de ninguém. Mas, se hoje nós somos as nossas próprias Candinhas, é bom lembrar que não falamos para nossos vizinhos, e sim para o mundo.

LULIE MACEDO é editora-geral do Núcleo de Revistas da Folha


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