São Paulo, terça, 6 de janeiro de 1998.



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Tenho dito

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Não existem mais, e se existem, são poucos. Mas houve tempo em que esses oradores apareciam em todos os lugares e ocasiões. Falavam sobre qualquer assunto ou mesmo sobre assunto nenhum, variavam o estilo, o arroubo, o gestual, a gramática e a oportunidade. Mas tinham em comum o final decisivo, contra o qual ninguém duvidava pois todos aplaudiam aliviados: "Tenho dito!"
No Parlamento, em casamentos e batizados, em festas de aniversário, em velórios, à beira dos túmulos, mas sobretudo à sobremesa de ágapes festivos, era uma fatalidade como a aparição de um cometa, um eclipse. Depois do ameaçador "peço a palavra", o mais importante era quando aparecia, afinal, o "tenho dito!"
Equivalia, mudadas as circunstâncias e propósitos, ao "vale o escrito" que até hoje é estampado nas listas do jogo do bicho. Curioso: muita gente pensa que foram os bicheiros os inventores dessa fórmula peremptória, irretorquível, de não deixar dúvida sobre a validade daquilo que está escrito.
Foi Pilatos, o próprio, ou seja, o Pôncio que lavou as mãos e entrou como pilatos no credo, foi ele quem inventou a frase. Refresco de memória: ele escreveu aquele "Inri" que até hoje comparece na cruz do Calvário: Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus.
Os judeus não gostaram daquele rei e foram a Pilatos pedir que o escrito não valesse, o Jesus de Nazaré ali pendurado podia ser tudo, menos sucessor de grandes reis como Saul, Davi e Salomão.
Pilatos era cidadão romano, não tinha rei nenhum, tinha apenas um imperador que mandava nele e em todo o mundo, inclusive nos judeus. Com arrogância, respondeu: "O que escrevi, está escrito". Em latim é um pouco diferente: "quod scripsi, scripsi". Numa tradução bastante livre: vale o escrito, tenho dito.
Nesses dias de feriados seguidos, os assuntos escasseiam, daí que eu consegui emplacar um "tenho dito" sem dizer nada.



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