São Paulo, segunda-feira, 06 de janeiro de 2003

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BORIS FAUSTO

Marco civilizatório

Partindo do quadro mais geral, duas constatações acerca da posse de Lula na Presidência da República foram destacadas, nos últimos dias. A posse foi comemorada com uma festa popular, sem paralelo na história política do país. Ao mesmo tempo, se ela foi inequivocamente popular, não foi nacional, e sim partidária -festa dos militantes dos partidos de oposição, com o PT à frente.
Os símbolos e as imagens expressaram essa sensível restrição: o verde-amarelo apareceu envergonhado, quando apareceu; a praça dos Três Poderes foi tomada pelo mar de bandeiras vermelhas, pelas estrelas petistas e pela foice e o martelo, expressão de uma grande utopia do século 20 que resultou no desastre de regimes totalitários.
Na festa, a expressão verbal não teve maior destaque, mesmo levando-se em conta o peculiar discurso do novo presidente, que começou arrasador na crítica ao "modelo vigente", para a alegria de seus radicais, e foi sendo temperado, ao longo das frases, com alusões aos limites do possível.
Os gestos ganharam o primeiro plano e dentre eles a efusão, e não a mera cordialidade, que marcou a passagem da faixa presidencial, do já ex-presidente Fernando Henrique ao novo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não cabe aqui tentar descrever a cena a que o país assistiu pelas redes de televisão, e sim recordar apenas a emoção que tomou conta das duas figuras políticas, muito comum em Lula e inusitada no sempre contido Fernando Henrique.
O gesto coroou, no plano pessoal, os traços positivos de uma rara transição e só não surpreendeu, considerando-se os antecedentes dos últimos meses. Mas, visto em uma perspectiva mais ampla, desenhou-se, contraditoriamente, sobre o pano de fundo de pelo menos oito anos em que as rivalidades entre o PT e o PSDB chegaram a ser encarniçadas. Se o principal líder da oposição foi alvo de críticas, ou de ironias lançadas por políticos tucanos, o presidente Fernando Henrique foi objeto de ataques sem trégua por parte dos quadros petistas e, em particular, de sua intelectualidade "enragé", culminando na malfadada campanha do "fora FHC".
Decorreram 41 anos até que, de novo, um presidente constitucionalmente eleito passasse o cargo a outro, nas mesmas condições. Entretanto, um mundo separa a saída de Juscelino e a posse de Jânio, em 31 janeiro de 1961, da atual transição. Naquela data, em uma Brasília que ainda engatinhava, a transmissão do poder foi carregada de tensão. Quando muito, se conseguiu evitar que Jânio desfechasse, frente a frente, um ataque virulento ao governo Juscelino, adiando-se, apenas por algumas horas, o ataque que viria, em mensagem radiofônica, na noite do mesmo dia 31.
Os dois presidentes -Lula e Fernando Henrique- protagonistas da cena contemporânea não partiram, pois, de volta ao passado, mas projetaram para o futuro um simbolismo novo, um marco no longo e difícil caminho de um processo civilizatório.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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