São Paulo, segunda-feira, 06 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Unicamp e o centenário de Sérgio

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI


Analisei o acervo, mais de 10 mil volumes, uma dissertação de mestrado inédita, sobre um assunto que sempre me encantou

Sempre tive dificuldade de harmonizar movimentos que levam a mesma taxonomia nas artes plásticas, literatura e na música.
Prefiro ouvir as "Variações Goldberg", de Bach, olhando os vitrais góticos da Saint Chappelle, do que sentado diante das belas igrejas barrocas da Piazza Navona. Sentir-me-ia mais homeostático ouvindo a "Sonata Kreutzer", de Beethoven, diante da beleza iluminada dos Caravaggios da Igreja San Luigi dei Francesi. Porém a história tem uma certa neurose classificatória e devemos respeitá-la, mas com certo direito a estranhamentos.
Foi essa mesma sensação que tive quando filósofos e historiadores da Unicamp, no início do ano de 1983, entraram no meu gabinete de reitor dizendo que precisávamos adquirir a obra de um dos maiores modernistas, pois estava sendo negociada com a USP. Pensei imediatamente em Anita Malfatti ou Tarsila do Amaral, de Capivari, ou em Lasar Segall, de cuja chácara roubava jabuticabas, em meus tempos de criança, na Vila Mariana.
Mas não, tratava-se do Sérgio Buarque de Holanda, de quem eu tinha lido apenas alguns capítulos de "Raízes do Brasil" e consultado sua "Antologia dos Poetas Brasileiros na Fase Colonial", quando se despertou em mim um passageiro estro poético.
De fato, ao se lerem os capítulos "Trabalho e Aventura" e "Homem Cordial", percebe-se uma abordagem estruturalista que rompe com a hierarquia autoritária da maioria dos historiadores, além de um enfoque weberiano patrimonialista; tudo isso significando uma ruptura, que o levaria ao Modernismo, junto com Oswald e Mário de Andrade.
Conhecia o Sérgio, entretanto, por relatos de um íntimo amigo seu, com quem convivi bastante, José de Aguiar Pupo, boêmio como ele, e já sabia de suas características de homem afável e crítico, jornalista sério e escritor que ia à profundidade dos fatos.
O valor pedido era alto e a universidade estava começando a sair da crise; eu era um jovem reitor, recém-empossado. Decisão difícil. Analisei o acervo, mais de 10 mil volumes, uma dissertação de mestrado inédita, sobre um assunto que sempre me encantou, "Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa à Época do Descobrimento", em que Sérgio expunha com ênfase a convivência multiétnica de muçulmanos, negros e judeus como base da vitalidade científica da época, que criou condições para o descobrimento do Novo Mundo. Aliás, percebia-se claramente que essa tese era a obra precursora das "Raízes do Brasil", em que são tratados nossos vínculos culturais com a península Ibérica.
Havia também o desejo, da família, de que seus móveis e pertences pessoais viessem com o acervo. Dormi duas noites, ouvi ponderações favoráveis de Ubiratan D" Ambrosio e de Ferdinando Figueiredo, apaixonado por Pedro Nava, amigo de Sérgio e, para o espanto e alegria de Antonio Candido, Amaral Lapa e outros filósofos e literatos da Unicamp, decidi pela aquisição.
É agradável hoje olhar para o passado e rever uma decisão acertada, como a de ter, no Centro de Memória da Unicamp, o acervo de quem dedicou sua vida à tarefa de compreender o país e sua identidade. No 100º aniversário de Sérgio, tanta coisa importante já foi realizada com base nessa aquisição -teses, livros, centenas de consultas- e a Unicamp o festeja com preciosismo acadêmico, pelo fato de possuir o seu acervo e torná-lo permanentemente acessível ao mundo intelectual, como está fazendo, oferecendo-o através de um site especial (www.unicamp.br/siarq/sbh).
A universidade deve produzir cultura, mas também ser sua guardiã. Daí a importância, entre tantos outros, do acervo do Sérgio Buarque de Holanda no Centro de Memória da Unicamp, esse homem que, com Gilberto Freyre, resgatou a formação da brasilidade. Enquanto o escritor pernambucano abordou a nação pela ótica da casa-grande, Sérgio o fez por dentro da senzala, e, talvez por essa visão sensível, ele jamais teve escrúpulos de unir sua atividade acadêmica à militância política.
Essa é outra lição extremamente atual de Sérgio: derrubar pudores tolos que desengajam os intelectuais da política brasileira e a tornam cada vez mais pobre.

José Aristodemo Pinotti, 68, deputado federal eleito pelo PMDB-SP, é professor titular e chefe do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da USP. Foi secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, secretário da saúde do município de São Paulo (2000) e reitor da Unicamp (1982-1986).


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