São Paulo, segunda-feira, 06 de janeiro de 2003

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As dívidas públicas "alongadas"

TERESA ARRUDA WAMBIER e LUIZ RODRIGUES WAMBIER


O poder público não é um bom pagador. Com frequência descumpre obrigações. É conhecida a sua conduta irregular

A emenda constitucional nš 30, de 13 de setembro de 2000, modificou o art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, criando a figura que se tornou conhecida como moratória pública. Um tipo de concordata ou, numa palavra da moda, o "alongamento" da dívida pública que já estivesse consolidada naquela data. Consolidada é a dívida objeto de precatórios expedidos pelo Judiciário. O precatório é o instrumento legal para que as dívidas públicas oriundas de decisões judiciais sejam pagas respeitando a ordem cronológica de sua apresentação.
O poder público não é bom pagador. Sua conduta irregular é de todos conhecida. É frequente o descumprimento de suas obrigações, do mesmo modo que o desregramento no emprego do dinheiro público, nem sempre utilizado em função de prioridades sociais.
Além disso, o poder público é o grande "cliente" do Judiciário. Simples consulta aos sites do STF e do STJ serve para que se constate a quantidade de ações judiciais que o envolvem. São discussões intermináveis, frequentemente levadas adiante com o inconfesso desejo do Estado de não cumprir compromissos. Essa conduta é reconhecida até mesmo pela Constituição Federal, que, através da emenda nš 30, deu "fôlego" ao Estado, criando moratória para as dívidas públicas pendentes de pagamento dos precatórios requisitórios.
Pela regra que veio com a emenda, os precatórios pendentes até a data de sua promulgação tiveram o seu pagamento parcelado em até dez prestações anuais, iguais e sucessivas. Essa nova norma teve vigência imediata. Isso quer dizer que, em 31/12/01, venceu a primeira parcela desse inusitado "crediário". A última delas vencerá em 2010. Assim é que se fez: as dívidas do poder público já consolidadas em precatórios naquela data puderam ser parceladas em até dez prestações anuais. Sem carência. Quer dizer, sem que o poder público pudesse adiar o início dos pagamentos para 2002, 2003 etc. Isso a regra não permitiu.
Mas e se não foi paga a primeira parcela em 2001? Ou se não se pagar em 2002 a segunda? Como pode reagir o credor diante de descumprimento do dever de pagar cada parcela?
A lei criou para o credor a opção de compensar seu crédito com tributos. Em linguagem muito simples: o credor que tem para receber, mas tem para pagar, faz um acerto de contas com o poder público e evita o calvário da moratória. Mas e se essa não for a opção do credor dos precatórios? É possível que o credor não deva para o Estado, ou que simplesmente não queira compensar seus créditos com tributos. Também é possível imaginar que o credor não queira ceder seu crédito a terceiros para que estes compensem suas próprias dívidas fiscais. Que saída terá ele, então?
O próprio art. 78 tem a resposta. Diz a lei que, vencido o prazo sem pagamento, pode o credor requerer ao Poder Judiciário o sequestro de recursos públicos suficientes para o pagamento da prestação vencida. Se o tribunal negar esse direito, o credor poderá se valer de mandado de segurança.
Algumas dúvidas podem ocorrer quanto ao pedido de sequestro: Quem pode fazê-lo? Qualquer credor?
Essas dúvidas são interessantes porque, como para o pagamento do precatório, espontaneamente, há que respeitar ordem cronológica de sua apresentação, poder-se-ia pensar que também para pedir o sequestro haveria alguma ordem de precedência. Por outras palavras, a ordem cronológica, que não se pode desrespeitar na hipótese de pagamento espontâneo, valeria também para o direito de requerer o sequestro?
É óbvio que não. Não se pode vincular o direito de pedir o sequestro a uma ordem de precedência. A sequência (a "fila") dos precatórios existe só para o pagamento pelo poder público (para evitar privilégios em favor de um ou outro credor "amigo") e não pode interferir no direito de pedir o sequestro.
Se fosse assim, poderíamos pensar na hipótese de o Estado não pagar o credor nš 1 (quer dizer, o primeiro da "fila" de precatórios devidos) e sujeitar os demais credores à conduta do primeiro. Por esse raciocínio, absolutamente equivocado, os demais credores teriam o seu direito de sequestro condicionado ao exercício do direito de sequestro pelo primeiro credor. Se o Estado não pagar a parcela devida, qualquer credor pode pedir o sequestro do valor suficiente para o pagamento de seu crédito.
Outro argumento sem pé nem cabeça seria o de que o pedido de sequestro só poderia ser feito depois de terminado o prazo total do parcelamento. Não tem o menor fundamento, embora possa ser utilizado para sustentar o crônico vezo estatal de "empurrar" o pagamento das dívidas indefinidamente. Nada na Constituição autoriza esse raciocínio.
A verdade é que, deixando o Estado de pagar as parcelas de sua "moratória", ano a ano tem o credor o direito de pedir o sequestro do valor atualizado de cada parcela vencida e não-paga, sempre respeitando-se os critérios de correção monetária e de juros estatuídos nas sentenças judiciais. Assim, na estranha situação de o Estado não pagar nenhuma das parcelas devidas, estará sujeito, a cada vencimento, ao sequestro dos recursos.
Afirmar que o direito ao sequestro somente existiria depois de vencido todo o parcelamento, isto é, depois dos dez anos se passarem, sem nenhum pagamento, seria o mesmo que criar um prazo de carência de dez anos para que só ao seu final pudesse o credor pedir o sequestro constitucional. É claro que trata-se de hipótese absolutamente descabida, porque faria com que a moratória constitucional fosse de 20, e não de dez anos, como previsto na Constituição.
O pagamento dos precatórios em doses homeopáticas, por força dessa moratória constitucional, já é uma violência às relações jurídicas entre o Estado e os particulares. Pior que isso será negar, o que se espera que o Poder Judiciário jamais permita, o direito de sequestro constitucional, previsto na Constituição Federal como garantia do particular contra o Estado mau pagador. Isso somente estimularia o "calote" público.
É hora de as leis serem respeitadas por todos, inclusive pelo poder público.

Teresa Arruda Alvim Wambier, 45, advogada, é professora nos cursos de graduação e doutorado em direito na PUC-SP e na PUC-PR.
Luiz Rodrigues Wambier, 47, advogado, é professor nos cursos de graduação e mestrado em direito na Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR) e na PUC-PR.



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