|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOÃO SAYAD
Cinzas
A Quaresma começou na quarta-feira. Tempo de arrependimento e renovação. Do que devemos
nos arrepender?
Primeiro, os pecados menores, as
gafes, pequenos erros inexplicáveis
que provocam um arrependimento
desproporcional. São involuntárias
como soluços. O príncipe Philip da Inglaterra, ex-príncipe da Grécia e Dinamarca, comete tantas gafes quanto o
presidente-operário do Brasil. Ao presidente da Nigéria, de camisolão muçulmano de gala, perguntou: "Então,
presidente, pronto para dormir?".
Depois vêm os pecados veniais do
Carnaval e do ano inteiro -luxúria,
preguiça, gula, ira. Não são sérios, pois
podem ser rotineiramente perdoados
a partir desta época do ano.
Pelos pecados mortais somos castigados no inferno que criamos aqui
mesmo. Ofensas irreparáveis que não
perdoamos nem conseguimos perdoar, amigos que ficaram distantes,
longos caminhos percorridos e não há
mais tempo para voltar atrás.
Os pecados coletivos são os mais
mortais. Ninguém é culpado, ainda
que todos sejamos pecadores. Somos
tentados por um diabo invisível, criado por nós mesmos sem premeditação. Chama-se "sistema" e vem disfarçado de ciência, natureza ou lógica.
Transforma virtudes em pecado e pecados em virtude. Em cada época tem
um nome -pode ser o capital, a raça,
a salvação da pátria, o comunismo, o
anticomunismo, o terrorismo ou o
antiterrorismo.
No início do século passado, a biologia deu um grande salto, depois da
teoria da evolução e das descobertas
de Mendel. Nos Estados Unidos, apareceu um movimento pela eugenia.
Conseguiram proibir casamentos inter-raciais em alguns Estados. Os Estados Unidos foram o primeiro país do
mundo a aprovar leis que permitiam a
operação cirúrgica de um paciente
sem a sua autorização.
No Brasil tivemos mais sorte. Os
biólogos nacionais concluíram que os
casamentos entre negros e brancos
acabariam por branquear o país. A natureza evitaria o desaparecimento dos
brasileiros brancos.
Idéias "científicas" não caem do céu.
Disfarçadas de ciência, logo se transformaram na tragédia do Holocausto.
Os culpados se defenderam dizendo
que apenas "obedeciam ordens".
Atualmente, na área de biologia, há
muita preocupação ética. Mas o racismo e a luta contra o terrorismo provocam mais terror que o próprio terrorismo.
Economia é o meio de cultura mais
adequado para a proliferação de pecados coletivos e equívocos trágicos. O
diabo da época transforma a avidez
dos poderosos em ciência. A massa de
eleitores é a primeira vítima. Motoristas de táxi e barbeiros acreditam que a
taxa de juros dos últimos anos é "natural".
Ao começar a Quaresma, precisamos adivinhar quais os pecados coletivos que nos ameaçam e quais as peças que o diabo vai nos pregar neste
ano de 2006 . Em geral, o Brasil tem tido sorte. Fomos protegidos do padrão-ouro pela impossibilidade de
obedecer às regras da doutrina. Fomos criativos nos planos de desindexação. Há alguns anos, entretanto, estamos sofrendo as regras científicas da
"nova economia". Não importa o passado. Saberemos votar em outubro?
João Sayad escreve às segundas-feiras nesta coluna.
@ - jsayad@attglobal.net
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Sergio Costa: O efeito chuvisco Próximo Texto: Frases
Índice
|