São Paulo, segunda-feira, 06 de março de 2006

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JOÃO SAYAD

Cinzas

A Quaresma começou na quarta-feira. Tempo de arrependimento e renovação. Do que devemos nos arrepender?
Primeiro, os pecados menores, as gafes, pequenos erros inexplicáveis que provocam um arrependimento desproporcional. São involuntárias como soluços. O príncipe Philip da Inglaterra, ex-príncipe da Grécia e Dinamarca, comete tantas gafes quanto o presidente-operário do Brasil. Ao presidente da Nigéria, de camisolão muçulmano de gala, perguntou: "Então, presidente, pronto para dormir?".
Depois vêm os pecados veniais do Carnaval e do ano inteiro -luxúria, preguiça, gula, ira. Não são sérios, pois podem ser rotineiramente perdoados a partir desta época do ano.
Pelos pecados mortais somos castigados no inferno que criamos aqui mesmo. Ofensas irreparáveis que não perdoamos nem conseguimos perdoar, amigos que ficaram distantes, longos caminhos percorridos e não há mais tempo para voltar atrás.
Os pecados coletivos são os mais mortais. Ninguém é culpado, ainda que todos sejamos pecadores. Somos tentados por um diabo invisível, criado por nós mesmos sem premeditação. Chama-se "sistema" e vem disfarçado de ciência, natureza ou lógica. Transforma virtudes em pecado e pecados em virtude. Em cada época tem um nome -pode ser o capital, a raça, a salvação da pátria, o comunismo, o anticomunismo, o terrorismo ou o antiterrorismo.
No início do século passado, a biologia deu um grande salto, depois da teoria da evolução e das descobertas de Mendel. Nos Estados Unidos, apareceu um movimento pela eugenia. Conseguiram proibir casamentos inter-raciais em alguns Estados. Os Estados Unidos foram o primeiro país do mundo a aprovar leis que permitiam a operação cirúrgica de um paciente sem a sua autorização.
No Brasil tivemos mais sorte. Os biólogos nacionais concluíram que os casamentos entre negros e brancos acabariam por branquear o país. A natureza evitaria o desaparecimento dos brasileiros brancos.
Idéias "científicas" não caem do céu. Disfarçadas de ciência, logo se transformaram na tragédia do Holocausto. Os culpados se defenderam dizendo que apenas "obedeciam ordens".
Atualmente, na área de biologia, há muita preocupação ética. Mas o racismo e a luta contra o terrorismo provocam mais terror que o próprio terrorismo.
Economia é o meio de cultura mais adequado para a proliferação de pecados coletivos e equívocos trágicos. O diabo da época transforma a avidez dos poderosos em ciência. A massa de eleitores é a primeira vítima. Motoristas de táxi e barbeiros acreditam que a taxa de juros dos últimos anos é "natural".
Ao começar a Quaresma, precisamos adivinhar quais os pecados coletivos que nos ameaçam e quais as peças que o diabo vai nos pregar neste ano de 2006 . Em geral, o Brasil tem tido sorte. Fomos protegidos do padrão-ouro pela impossibilidade de obedecer às regras da doutrina. Fomos criativos nos planos de desindexação. Há alguns anos, entretanto, estamos sofrendo as regras científicas da "nova economia". Não importa o passado. Saberemos votar em outubro?


João Sayad escreve às segundas-feiras nesta coluna.
@ - jsayad@attglobal.net


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