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Dar voz à barbárie?
WOLFGANG LEO MAAR
Em vez de valorizar uma sociedade democrática e pacífica, o autor dá vazão ao que há de pior, cooperando para sua reprodução
DIZER O INDIZÍVEL é ser porta-voz da barbárie? O mais preocupante em relação ao artigos
"Razão e sensibilidade", publicado no
dia 18 de fevereiro, e "Dizer o indizível", de 4 de março [ambos de autoria
de Renato Janine Ribeiro e publicados no caderno Mais! desta Folha], é
existir um contingente grande de
pessoas que podem ser iludidas com a
falsa argumentação em prol da violência. Isso exige que se tome partido
de público. Urge criticar a instrumentalização conservadora de intelectuais pelo status quo, esta, sim, irmã do fascismo.
Todos nós, sensíveis em relação aos
outros, partilhamos o sentimento de
horror em relação a crimes bárbaros.
Mas isso não significa contrapor sensibilidade e razão. Ao contrário, precisamos de mais, e não menos razão.
Há que dizer, por mais que isso
contrarie relações privadas, que os
dois artigos se rendem voluntariamente ao existente em sua face mais
desumana e aterrorizante, que é justamente o objeto da intervenção
transformadora das políticas públicas democráticas.
Os textos nem sequer tomam como
objeto da experiência de seu autor a
impotência a que se vê reduzido, mas
embarcam ideologicamente na esfera
hiperindividualizante de uma realidade desprovida de direitos humanos. Em vez de valorizarem o que deveria ser uma sociedade democrática
e pacífica, dão vazão ao que há de pior
no presente e, assim, contribuem para a sua reprodução.
O autor sucumbe completamente
ao autoritarismo vigente em sua
apresentação mais cruel, construção
de uma ideologia sustentada no terror, centrada no discurso da segurança, que arrasa com os direitos construídos ao longo do processo civilizatório para impor à força uma ordem
injusta. A sensibilidade é aparente: é
aceitação insensível da violência.
O autor, em vez de se posicionar
como intelectual, diz só o que agrada:
"sentimentos". Procura "razões" para
uma pretensa "sensibilidade", mas só
expressa com insensibilidade o mais
rasteiro lugar-comum imediato do
revide. Os artigos referidos apagam a
distinção entre a terrível situação em
que se vive e a experiência política,
ética, civil de uma formação social
que, ao fazer valer a liberdade, não se
curva às imposições do comportamento vigente.
Impressiona que alguém, publicamente, ceda tanto à realidade em vigor que não consiga sequer imaginar,
quanto mais propor, nada diferente,
em termos de sociedade, do que o que
se impõe como vigente. Ele se curva a
uma realidade cuja aparência de civilização tem pés de barro. Ao mesmo
tempo, atribui pés de barro à experiência de emancipação efetiva!
O quadro vigente é conseqüência
do descaso prolongado do poder público com a valorização da vida individual e da educação pública. Mais: é
o que convém a interesses que exigem um contexto de terror para se
impor. Vide a política do terror travestida de "segurança" que resultou
na Guerra do Iraque.
Uma posição digna diante desse
quadro é realçar criticamente a experiência da distância que separa a realidade do horror do cotidiano de uma
esfera pública centrada na liberdade
e na paz. É contribuir para realizar o
que está ausente, em vez de reforçar
manifestações dignas de Talião.
Precisamente do intelectual se espera que não se renda ao vigente. Seu
compromisso ético reside em tornar
o conflito com o vigente objeto de experiência crítica e elaboração progressiva. Que não aja apenas regido
pelo estabelecido em seus padrões de
punição, mas saiba diferenciar entre
o que ocorre sob o controle da violência e as possibilidades de uma organização social pautada em reconhecimento mútuo, solidariedade e aspiração da igualdade. Ter sensibilidade
pelo outro é tomar partido a favor dos
direitos da liberdade e da igualdade.
Em vez disso, o autor manifesta
uma adesão comportada a pedir
aplausos (seria esse o objetivo principal?) a padrões coletivizados de comportamentos de massa que prosperam na penumbra de uma cultura da
violência e do autoritarismo e que favorecem a ausência de controles político-sociais e democráticos.
Estes últimos representam a lenta aquisição
de uma ética pública de igualdade e liberdade, jogada pelo autor dos dois
artigos na lata de lixo.
Não seria essa conquista gradual e
coletivamente mediatizada de hábitos de convívio democrático no plano
da reprodução material da sociedade,
para além do pseudo-sentimento belicista do agrado das massas em sua
hiperindividualização, o que se chama de educação?
WOLFGANG LEO MAAR, 61, doutor em filosofia pela
USP, é professor titular de filosofia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). É autor, entre outras obras,
de "O que É Política".
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