São Paulo, sexta-feira, 06 de maio de 2005

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JOSÉ SARNEY

Direitos humanos e o besouro barbeiro

Muitas coisas precisam nos preocupar. Mas falta tempo e, por isso, vamos sendo enganados pela vida cheia de problemas. Agora mesmo estamos vendo como nos descuidamos dos preconceitos. Foi preciso a Secretaria dos Direitos Humanos nos alertar para essa maldade.
Não é que eu passei a vida toda considerando o preto uma cor, a preta, sem saber que assim estava ofendendo toda a África e sendo racista, porque "achando a coisa preta" ia denegrir pessoas, sem querer nem pensar. Lembro-me de Jorge Amado, que foi o primeiro a descobrir isso, porque ele sempre dizia: "a coisa está como entre as pernas dessas mulheres, preta". E, nesse caso, não ofendia as pretas, mas tratava das bondades do gênero feminino, segundo Caminha, o que ele certamente preferiria fazer para não ser enquadrado como racista.
Os meninos precisam ser educados para, ao chegar ao circo, não pedir "quero ver o anão" ou "o palhaço", porque trata-se de discriminação. Calculo como o Severo Gomes estaria agora contando aquela história de que tanto gostava, das senhoras da alta hierarquia paulista quando fizeram uma campanha para recolher meninos de rua que perambulavam na noite, abandonados. Ao encontrar um deles, urinando num poste, partiam para ampará-lo: "Filhinho, vem cá, para levarmos você ao albergue". E ele, mostrando àquelas mulheres todo o orgulho de suas virtudes, respondia: "Eu não sou criança, sou um anão bêbado". E agora? Como teria de dizer? Confesso que não sei. Talvez um gigante que não cresceu de uma forma ordenada.
A famosa Cartilha que fez João Ubaldo ficar roxo de raiva (espero que o roxo não ofenda ninguém) é um guia de febeapá que não podemos aceitar para não sermos "farinha do mesmo saco", ou, como se diz no Amapá, "caldo da mesma panela".
Com a eleição do papa Bento 16, uma parenta minha, já avançada em anos, precursora do direito da mulher de não se sujeitar à chatura de um marido a vida inteira e por isso desquitada, fez-me uma carta perguntando: "É verdade que esse novo papa não vai deixar-me comungar porque sou separada, eu que sou beata do sagrado coração?". Ora, ela mesma estava cometendo uma autodiscriminação, porque, a partir de agora, ninguém pode ser beata, termo que ofende os direito humanos. Passei por cima da autoridade do papa, mandei-a comungar livremente e tratei-a de beatíssima. E o masculino beato, será permitido? E as implicações na igreja? Não haverá mais beatificação? E o beato Anchieta, onde fica?
Na linha do pensamento da Cartilha, vê-se que ela tem lacunas. As piadas de português, de campineiro e de pelotense não estão incluídas? Será discriminação?
O "barbeiro" que transmite a doença de Chagas é a maior prova de violação da Carta das Nações Unidas, pois colocam seu nome nesse besouro dizimador.
Os nossos dicionaristas vão ter grande trabalho com a supressão das palavras e expressões da cultura popular e com a definição desses novos vocábulos. Vejo o nosso Aurélio tremendo na tumba, ele o mago do verbete perdendo para a Cartilha. Vejamos este exemplo: "Funcionário público: ... os trabalhadores dos órgãos e empresas públicas devem ser chamados de servidores públicos para enfatizar que servem ao público mais do que ao Estado". Não chamem ninguém de funcionário público nem de "ladrão", "termo aplicado a indivíduos pobres".
Coitados dos pobres, inclusive os de espírito.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
@ - jose-sarney@uol.com.br


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