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TENDÊNCIAS E DEBATES
O Brasil tem tido uma política de relações exteriores hábil para a América do Sul?
SIM
Entre tapas e beijos
FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA
A nova política boliviana em relação aos recursos naturais, em especial gás e petróleo, surpreendeu a comunidade internacional e em particular o
presidente do Conselho de Ministros
espanhol, José Luis Zapatero, e o presidente Lula da Silva.
Tanto Espanha quanto Brasil haviam
oferecido colaboração com o novo governo de Evo Morales e não esperavam
um ato unilateral e violento por parte de
La Paz. As explicações da decisão de
Morales são variadas. Entretanto, alguns fatores devem ser destacados.
Uma fração importante do movimento
popular na Bolívia, incluindo-se aí boa
parte do "Movimiento al Socialismo",
do próprio presidente, temia imensamente uma guinada de Morales para o
centro depois das eleições. Assim, muitas "federaciones" e sindicatos já se preparavam para uma intensa oposição ao
presidente eleito.
Morales possui uma imensa consciência do risco de decepção das massas excluídas bolivianas e já no seu discurso
de posse assegurou: "Posso errar, mas
jamais trair". Por outro lado, iniciou-se,
no mesmo dia do anúncio da nacionalização, a campanha para as eleições da
Assembléia Nacional Constituinte, que
deverá -na expressão de Morales-
"repactuar" a república boliviana. Evo
Morales vinha perdendo aceitação, incluindo-se aí a esquerda, para a campanha eleitoral que concluirá nas eleições
de 2 de julho de 2006. Havia nos círculos
próximos do presidente um medo concreto de que o governo fosse paralisado,
a partir de meados do ano, com a reunião de uma Assembléia Constituinte
onde uma fração de direita se aliaria a
uma extrema esquerda para boicotar o
novo presidente.
Para Morales é fundamental, visando
viabilizar seu próprio governo, garantir
que a Assembléia Constituinte não seja
hostil ao seu governo. Ele entendeu que
o caminho seria assumir plenamente a
liderança do movimento popular, "emparedar" a oposição de esquerda e eleger a maior bancada possível com um
MAS domesticado e sob seu controle.
Assim, o decreto lançou novamente
Morales para a ponta do movimento
popular naquele país e obrigou a oposição de esquerda a cerrar fileiras com o
presidente.
Ele não teve sensibilidade, no entanto,
para perceber que fazendo um jogo duro com as petroleiras -o que garante
seu "front" interno- cria fortes oposições externas. Alienando o Brasil, isola-se facilmente, já que a postura dos Estados Unidos é bastante dura com sua política contrária à erradicação da coca.
Por que alienar amigos em potencial?
Não só em razão da política interna,
mas ainda em virtude de uma nova configuração geopolítica na América do
Sul. Evo Morales encaminha-se para
um entendimento com a China, voraz
consumidora de energia e que estaria
disposta a investir pesadamente nas instalações de Piura, no Peru, como uma
saída do gás (liquefeito) para a área do
Pacífico. Da mesma forma, a desenvoltura de Chávez no continente -em
aberta disputa com Lula da Silva pela liderança continental- daria à Bolívia o
respaldo técnico e financeiro necessário
para operar as plantas expropriadas,
através de colaboração direta da
PDVSA, a estatal venezuelana.
Morales imagina estar com os elementos necessários para desafiar Brasil,
Espanha, Argentina e, de quebra, Estados Unidos. Os elementos desequilibradores neste caso são a presença da China no continente e a desenvoltura de
Chávez.
Suas ações colocaram sob os refletores
a política externa brasileira, abrindo um
amplo debate sobre sua eficácia. Apesar
dos críticos, agora bem mais acerbos,
continuamos acreditando que em seu
conjunto o Itamaraty agiu corretamente, embora sob ressalvas.
O Itamaraty percebeu o risco muito
tardiamente, no sentido de que as condições reais não podiam ser mudadas
bruscamente: a opção boliviana em gás
é uma constante de Brasília nos últimos
três governos. A única ressalva, talvez,
que se poderia fazer ao Itamaraty -já
que a chancelaria espanhola e argentina
também foram "enganadas"- é a relutância do nosso pessoal diplomático em
usar o que Joseph Nye Jr. denominou de
"hard power" e que em linguagem sertaneja seria uma relação de perfeita
combinação de "tapas e beijos". A fixação do Itamaraty em Mozart, esquecendo-se que em algumas situações a toada
sertaneja -afinal, uma tradição brasileira- faz os parceiros dançarem mais
intensamente, pode ter dado a Evo Morales a impressão de que nos conformaríamos com uma ação contrária à Petrobras, ou seja, contrária aos interesses
nacionais.
Para o presidente Lula, eis aí um problema: boa parte de sua estratégia eleitoral se baseia na construção de uma figura de estadista e líder mundial. Morales pode, assim, ter ajudado a oposição.
Lula está agora com a palavra... Espera-se que chamem os bolivianos para um
forró, e não para um bem comportado
sarau.
Francisco Carlos Teixeira da Silva é professor
titular de história moderna e contemporânea da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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