São Paulo, sábado, 06 de maio de 2006

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TENDÊNCIAS E DEBATES

O Brasil tem tido uma política de relações exteriores hábil para a América do Sul?

SIM

Entre tapas e beijos

FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA

A nova política boliviana em relação aos recursos naturais, em especial gás e petróleo, surpreendeu a comunidade internacional e em particular o presidente do Conselho de Ministros espanhol, José Luis Zapatero, e o presidente Lula da Silva.
Tanto Espanha quanto Brasil haviam oferecido colaboração com o novo governo de Evo Morales e não esperavam um ato unilateral e violento por parte de La Paz. As explicações da decisão de Morales são variadas. Entretanto, alguns fatores devem ser destacados. Uma fração importante do movimento popular na Bolívia, incluindo-se aí boa parte do "Movimiento al Socialismo", do próprio presidente, temia imensamente uma guinada de Morales para o centro depois das eleições. Assim, muitas "federaciones" e sindicatos já se preparavam para uma intensa oposição ao presidente eleito.
Morales possui uma imensa consciência do risco de decepção das massas excluídas bolivianas e já no seu discurso de posse assegurou: "Posso errar, mas jamais trair". Por outro lado, iniciou-se, no mesmo dia do anúncio da nacionalização, a campanha para as eleições da Assembléia Nacional Constituinte, que deverá -na expressão de Morales- "repactuar" a república boliviana. Evo Morales vinha perdendo aceitação, incluindo-se aí a esquerda, para a campanha eleitoral que concluirá nas eleições de 2 de julho de 2006. Havia nos círculos próximos do presidente um medo concreto de que o governo fosse paralisado, a partir de meados do ano, com a reunião de uma Assembléia Constituinte onde uma fração de direita se aliaria a uma extrema esquerda para boicotar o novo presidente.
Para Morales é fundamental, visando viabilizar seu próprio governo, garantir que a Assembléia Constituinte não seja hostil ao seu governo. Ele entendeu que o caminho seria assumir plenamente a liderança do movimento popular, "emparedar" a oposição de esquerda e eleger a maior bancada possível com um MAS domesticado e sob seu controle. Assim, o decreto lançou novamente Morales para a ponta do movimento popular naquele país e obrigou a oposição de esquerda a cerrar fileiras com o presidente.
Ele não teve sensibilidade, no entanto, para perceber que fazendo um jogo duro com as petroleiras -o que garante seu "front" interno- cria fortes oposições externas. Alienando o Brasil, isola-se facilmente, já que a postura dos Estados Unidos é bastante dura com sua política contrária à erradicação da coca. Por que alienar amigos em potencial? Não só em razão da política interna, mas ainda em virtude de uma nova configuração geopolítica na América do Sul. Evo Morales encaminha-se para um entendimento com a China, voraz consumidora de energia e que estaria disposta a investir pesadamente nas instalações de Piura, no Peru, como uma saída do gás (liquefeito) para a área do Pacífico. Da mesma forma, a desenvoltura de Chávez no continente -em aberta disputa com Lula da Silva pela liderança continental- daria à Bolívia o respaldo técnico e financeiro necessário para operar as plantas expropriadas, através de colaboração direta da PDVSA, a estatal venezuelana.
Morales imagina estar com os elementos necessários para desafiar Brasil, Espanha, Argentina e, de quebra, Estados Unidos. Os elementos desequilibradores neste caso são a presença da China no continente e a desenvoltura de Chávez.
Suas ações colocaram sob os refletores a política externa brasileira, abrindo um amplo debate sobre sua eficácia. Apesar dos críticos, agora bem mais acerbos, continuamos acreditando que em seu conjunto o Itamaraty agiu corretamente, embora sob ressalvas.
O Itamaraty percebeu o risco muito tardiamente, no sentido de que as condições reais não podiam ser mudadas bruscamente: a opção boliviana em gás é uma constante de Brasília nos últimos três governos. A única ressalva, talvez, que se poderia fazer ao Itamaraty -já que a chancelaria espanhola e argentina também foram "enganadas"- é a relutância do nosso pessoal diplomático em usar o que Joseph Nye Jr. denominou de "hard power" e que em linguagem sertaneja seria uma relação de perfeita combinação de "tapas e beijos". A fixação do Itamaraty em Mozart, esquecendo-se que em algumas situações a toada sertaneja -afinal, uma tradição brasileira- faz os parceiros dançarem mais intensamente, pode ter dado a Evo Morales a impressão de que nos conformaríamos com uma ação contrária à Petrobras, ou seja, contrária aos interesses nacionais.
Para o presidente Lula, eis aí um problema: boa parte de sua estratégia eleitoral se baseia na construção de uma figura de estadista e líder mundial. Morales pode, assim, ter ajudado a oposição. Lula está agora com a palavra... Espera-se que chamem os bolivianos para um forró, e não para um bem comportado sarau.


Francisco Carlos Teixeira da Silva é professor titular de história moderna e contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


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