São Paulo, sábado, 06 de maio de 2006

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TENDÊNCIAS E DEBATES

O Brasil tem tido uma política de relações exteriores hábil para a América do Sul?

NÃO

Contra os interesses nacionais

GUSTAVO IOSCHPE

O grande segmento da população brasileira que votou em Lula esperando uma mudança de modelo econômico foi duplamente lesado. Como se sabe, se mudança houve foi no sentido de agudizar o arranjo de política econômica que sufoca nosso crescimento.
Compensando essa ortodoxia doméstica, os governantes parecem querer retomar sua tradição esquerdista na política externa. No afã de tornar Lula uma liderança planetária histórica e o Brasil uma potência internacional, este governo vem tomando medidas de grande lirismo, mas danosas aos interesses da nação. Resultado: não ganhamos o almejado status internacional e, de quebra, perdemos a liderança que tínhamos na América do Sul.
Começamos nossas desventuras com o perdão das dívidas de países como Nigéria e Moçambique. Enquanto a nossa população sofre de privações para que honremos as nossas dívidas, o governo exime países mais pobres de saldar seus compromissos conosco, a título da "dívida histórica" que o Brasil teria com os países africanos por causa da escravidão. Não faz sentido. Se alguém tem de ser compensado, que sejam os escravizados, e não os libertos que ficaram para trás. Mesmo que fizesse sentido, deveríamos incorporar essa magnanimidade quando a nossa própria dívida estivesse equacionada. Não se faz política externa por sentimento de culpa.
Viria também a missão de pacificação do Haiti, o país mais miserável do continente, sem nenhuma importância geopolítica ou comercial para o Brasil. Mandamos para as favelas daquele país nossos soldados -os mesmos que não podem penetrar nas favelas brasileiras por não terem preparação e para não "prejudicar o moral da tropa"- enquanto nos nossos morros o tráfico de drogas queima civis vivos em ônibus. Novamente, a dúvida: em primeiro lugar, o custo vale a pena? E se vale, não deveríamos cuidar de nosso quintal antes de dar pitaco no do vizinho?
Recentemente, outra bola fora. Nas negociações da OMC de Hong Kong, o grupo dos emergentes, capitaneado pelo Brasil, extraiu pífias concessões da União Européia (para 2013), e permitiu que países subdesenvolvidos estabelecessem tarifas sobre produtos agrícolas. É o governo ajudando a criar barreiras para nossos produtos, em mercados que representam mais da metade do volume de nossas exportações.
Como se para remediar o dano aos agroexportadores, o governo deu uma mãozinha aos industriais. Argentinos, porém. Em acordo firmado no começo do ano, nossos negociadores, sob instruções expressas de Lula, concordaram com a criação de salvaguardas nos mercados argentinos em áreas nas quais a indústria brasileira é mais eficiente. Além de solapar o Mercosul, a iniciativa manda um triste recado aos nossos produtores: sejam eficientes, "pero no mucho". Se conquistarem algum mercado estrangeiro, o próprio governo brasileiro desfará seus ganhos.
O caso mais emblemático, porém, é o da nossa relação com a Bolívia. Em julho de 2004, Lula foi lá e anunciou um pacote de bondades que, segundo ele, "abrem caminho para encontrar respostas para o desenvolvimento do povo boliviano". O Brasil perdoou uma dívida de US$ 52 milhões e anunciou a criação de uma linha de crédito do BNDES para aquele país. Em agradecimento, o já desenvolvido povo boliviano foi às urnas em referendo e aprovou proposta de lei de hidrocarbonetos que elevou de 18% a 50% a taxação sobre a produção de gás, que incide principalmente sobre a Petrobras, maior produtora de gás da Bolívia, fonte de 15% do PIB daquele país. Esperava-se que uma multinacional com tamanha envergadura -e seu governo- protestassem veementemente contra essa lei. Pelo contrário.
O presidente Evo Morales foi recebido em Brasília com todos os chamegos destinados aos companheiros da jornada universal rumo à fraternidade. O presidente da Petrobras chegou a declarar que preferia ganhar pouco a não ganhar nada.
Tendo em vista essa recepção tão calorosa, o "compañero" Evo aumentou mais um pouco a taxa, de 50% a 82%, ao mesmo tempo em que estatizava os produtores de gás e óleo da Bolívia, tendo a cortesia de anunciar o ato em uma planta da nossa Petrobras. Não se via afronta desse tamanho aos interesses nacionais desde a Guerra da Cisplatina.
Enquanto os estrategistas de Brasília formulam seus mirabolantes planos de dominação internacional, vamos perdendo dinheiro para um país depois do outro, porque nossos líderes parecem não ter aprendido aquelas regrinhas básicas: 1- países não têm amigos, têm interesses; 2- que o presidente da Bolívia se preocupe com o desenvolvimento dos bolivianos, e o do Brasil, com o dos brasileiros.


Gustavo Ioschpe, 29, mestre em desenvolvimento econômico pela Universidade Yale (EUA), é autor de "A Ignorância Custa um Mundo - o Valor da Educação no Desenvolvimento do Brasil" (W11). Foi colaborador da Folha nos cadernos Fovest (1996-97) e Folhateen (1997-2000).


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