São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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CLONAGEM TERAPÊUTICA

A crer em sinais emitidos por senadores envolvidos nos debates sobre a clonagem terapêutica, a Câmara Alta do Parlamento deverá permitir pesquisas com células-tronco, uma promessa da ciência para curar doenças degenerativas e até para restaurar órgãos e tecidos avariados. Pelo consenso que se vai formando, o Senado Federal autorizaria investigações científicas com culturas de células obtidas a partir de embriões congelados por mais de três anos em clínicas de fertilização.
Se for de fato essa a posição do Senado, estará configurado um avanço em relação ao projeto de lei tal como saiu da Câmara dos Deputados, que, na prática, vetava a clonagem terapêutica. Mas uma eventual modificação pelos senadores levaria o texto de volta à Câmara, onde é especialmente forte a influência do lobby evangélico-católico, responsável pela primeira vitória do obscurantismo.
Vale notar que mesmo a proposta em cogitação no Senado está longe de poder ser considerada uma lei avançada. Ela apenas evitaria que o Brasil fosse condenado a um atraso científico do qual seria difícil se recuperar. O projeto autoriza cientistas a pesquisar sem entretanto dar-lhes as condições ideais para fazê-lo.
Na verdade, os senadores apenas impediriam que se consumasse o absurdo maior, que seria deixar de utilizar, em pesquisas com potencial para salvar inúmeras vidas, embriões -na verdade blastocistos, isto é, emaranhados de uma centena de células- que sobraram de tratamentos de fertilização e que nunca seriam implantados num útero para originar uma gravidez.
Outra falha na proposta em debate no Senado é que ela proibiria a produção de embriões especificamente para a pesquisa ou tratamento. Por enquanto essa limitação não oferece maiores problemas. Enquanto as investigações no campo das células-tronco são incipientes, experimentos podem ser realizados com umas poucas linhagens. No futuro, porém, se surgirem os resultados esperados, o veto à geração de embriões retiraria da clonagem terapêutica uma grande vantagem, que é a capacidade de produzir células a partir do DNA do próprio paciente, o que eliminaria completamente, acredita-se, o fenômeno da rejeição.
O lobby evangélico-católico que se opõe à clonagem terapêutica merece, no que toca às suas crenças, profundo respeito, mas isso não significa que seus valores devam ditar as regras de uma República pluralista, laica e que valoriza a vida efetiva, atual, mais do que a mera possibilidade de vida contida num blastocisto -que, de resto, se encontra não numa trompa ou num útero, mas num tubo de ensaio, sem a menor possibilidade, portanto, de dar origem a um feto. Além disso, só se submeteriam a um tratamento que envolva células-tronco obtidas a partir de embriões pessoas que não fizessem objeções morais a essa técnica, o que basta para preservar os direitos daqueles que não a admitem.
Viver numa sociedade multifacetada e complexa como a brasileira é administrar conflitos. Todos têm direito a suas crenças, mas as crenças de alguns não podem condenar o país ao atraso em áreas tão relevantes como a clonagem terapêutica.



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