São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A guerra e o direito internacional

JAKOB KELLENBERGER

Os fatos ocorridos no Iraque e em outros conflitos armados recentes não nos deixam esquecer que a dignidade essencial dos seres humanos com freqüência é uma das primeiras baixas das guerras. Crimes diversos são cometidos contra civis, contra combatentes feridos e doentes e contra pessoas privadas de sua liberdade em conflitos armados em todo o mundo. Isso acontece apesar de existir apoio quase universal para as Convenções de Genebra, os tratados que estão à base do direito humanitário internacional, que obriga todas as partes em um conflito a protegerem a vida e a dignidade de pessoas que não são combatentes ou já o deixaram de ser. Os fatos chocantes envolvendo detidos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, infelizmente constituem apenas um exemplo da violação dessas leis e dos valores que elas representam.
Para fazer frente às violações do direito humanitário internacional cometidas em conflitos armados, não basta simplesmente afirmar da boca para fora a proteção à vida e à dignidade humanas. É perturbador observar com que freqüência as violações do direito humanitário internacional são menosprezadas, qualificadas como ""danos colaterais" -por sinal, um termo chocante quando aplicado a seres humanos- ou pura e simplesmente justificadas como resultados aparentemente inevitáveis da busca por segurança.
Com freqüência, o compromisso, assumido por governos, exércitos, grupos rebeldes e outras organizações, de respeitar os princípios do direito humanitário não passam de retórica vazia que visa encobrir as violações dessas leis. No entanto essas leis foram criadas especificamente para levar em conta tanto as necessidades legítimas de segurança dos Estados quanto a obrigação de proteger a vida humana e os direitos humanos básicos. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) está convencido de que é possível alcançar um equilíbrio entre as duas coisas. É possível controlar um território e, ao mesmo tempo, respeitar sua população; e é possível prender as pessoas que põem a ordem pública em risco e, ao mesmo tempo, respeitar sua integridade física e espiritual e não as degradar nem humilhar.
O fato de que o CICV trabalha de maneira inteiramente independente de Estados e outros participantes permite-lhe monitorar de maneira digna de crédito até que ponto esses participantes respeitam suas obrigações sob o direito humanitário internacional. O CICV analisa as alegadas violações dessas leis em locais de detenção e as relata às autoridades responsáveis, sugerindo mudanças ou exigindo melhoras, quando preciso. Seus contatos diretos e confidenciais com autoridades permitem ao CICV realizar visitas regulares e repetidas a prisões e campos de detenção e, com isso, prestar ajuda direta a prisioneiros cujos direitos possam ter sido violados. No ano passado, delegados do CICV visitaram quase 470 mil detidos em 80 países, a maioria deles distante da atenção da imprensa. No momento em que escrevo este artigo, nossas equipes no Iraque continuam a visitar prisioneiros detidos pelas forças da coalizão, sempre com vistas a assegurar o respeito pela vida e os direitos daqueles que estão privados de liberdade.


A luta contra o terrorismo só pode ser legítima enquanto não solapar os valores básicos comuns à humanidade
Desde os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA, os atos que visam espalhar o terror entre civis e as medidas tomadas para impedi-los assumiram uma nova dimensão. Atos terroristas que alvejam e massacram civis de maneira indiscriminada constituem uma negação direta dos valores fundamentais que estão à base do direito internacional. O CICV condena tais crimes sem reservas. Também insiste em que a resposta a eles precisa ser conduzida nos limites estabelecidos pelo direito internacional. Quando a luta contra o terror equivale a um conflito armado, os Estados têm a obrigação de respeitar os princípios do direito humanitário internacional, mesmo que sua própria segurança esteja em jogo. Isso significa que pessoas privadas de sua liberdade não podem ser detidas e interrogadas fora de um contexto legal apropriado.
Alguns comentaristas parecem pensar que a ameaça do terrorismo justifica um enfraquecimento do direito internacional. Eles argumentam que a lei deve voltar-se em primeiro lugar à promoção das necessidades de segurança dos Estados e que a proteção legal dos indivíduos contra abusos de sua dignidade deve ser reduzida no interesse de prevenir atos terroristas. Discordo. Qualquer conjunto de leis precisa ser reavaliado continuamente e revisto para assegurar a continuidade de sua relevância. O direito humanitário internacional não constitui exceção a essa regra, e o CICV está envolvido em discussões com governos e especialistas para assegurar que permaneça relevante. Mas jamais concordaremos com o enfraquecimento dos dispositivos legais que protegem os direitos das pessoas envolvidas em conflitos armados.
A luta contra o terrorismo só pode ser legítima enquanto não solapar os valores básicos comuns à humanidade. O direito à vida e à proteção contra o assassinato, a tortura e os tratamentos degradantes precisam estar ao cerne das ações de todos os envolvidos nessa luta. Esta perderá sua credibilidade se for utilizada para justificar atos que, de outro modo, seriam vistos como inaceitáveis, tais como a morte de pessoas que não participam das hostilidades.
O mundo não deveria precisar de fotos de torturas e maus-tratos de prisioneiros para lembrar que a proteção à vida e à dignidade humanas é preocupação de todos e requer ação.

Jakob Kellenberger é presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha desde 2000. Foi secretário de Estado das Relações Exteriores da Suíça (1999).

Tradução de Clara Allain


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