São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Conversa fiada

OSCAR NIEMEYER

Muitas vezes ficamos, noite adentro, a conversar com os amigos. Conversa fiada, que nos faz muito bem.
E falamos de tudo. De política, de futebol, deste mundo perverso em que vivemos, dos nossos irmãos das favelas, dos meninos de rua a correrem pela madrugada, sem uma esperança sequer.
Não raro falamos do futuro, do inesperado, que tudo domina, e muitas vezes contra nós. Até da figura sinistra de Bush nos ocupamos. E aí, nacionalistas, todos se levantam a falar da Amazônia tão ameaçada e da política externa de Lula, que só podemos aplaudir.
No último encontro, observei que começava a me repetir -pessimista-, a comentar sobre a fragilidade das coisas e das nossas pobres vidas.
E, sem cair no niilismo, passando por Schopenhauer e pela leitura de "L'être et le Néant" ("O Ser e o Nada"), que nunca esqueci, aceitava a pouca importância da vida e de tudo o mais.
Depois, ao voltar para casa, fiquei a analisar esse meu ponto de vista que tanto repetia -para alguns, sem maior significação. E agradou-me perceber que havia uma certa razão para essa insistência, talvez desnecessária, apesar de representar uma idéia muito minha, a defender a conveniência de melhorar o ser humano, de fazê-lo mais modesto, o que a luta política, inclusive, reclama.


A proposta de Marx e Engels é legítima e apaixonante -mudar a sociedade, fazê-la boa e justa para todos
Lembro os velhos tempos... Como o partido era para muitos coisa sagrada, uma religião. Hoje continuo a admirá-los, convicto, como eles, de que a proposta de Marx e Engels é legítima e apaixonante -mudar a sociedade, fazê-la boa e justa para todos. Só o ser humano é que continuaria desprotegido diante do destino implacável.
E, procurando um exemplo que comprovasse o meu pensamento, era Kruschev que me aparecia. Ele, que, ambicioso, voltado para o poder, elaborou o lamentável relatório contra Stálin.
Satisfazia-me ver que até na luta política a modéstia seria eficaz, evitando erros como esse. E, mais ainda, na sociedade sem classes adotada, aceitando-se as limitações que o novo regime -igual para todos- vai estabelecer.
Sentia que essa preocupação com a modéstia e a importância que poderia assumir em qualquer movimento de caráter político nunca tinham sido devidamente valorizadas. O que parece justificar o empenho com que a elas costumo voltar, certo de que, mais modesto, o homem será um dia mais feliz.


Oscar Niemeyer, 96, arquiteto, é um dos criadores de Brasília. Tem obras edificadas na Alemanha, Argélia, EUA, França, Israel, Itália, Líbano e Portugal, entre outros países.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Jakob Kellenberger: A guerra e o direito internacional

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.