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TENDÊNCIAS/DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Você tem medo de viajar de avião?
SIM
"Porque mais não sei"
NELSON ASCHER
HOMEM QUE é homem não
tem medo de nada. Como essa
subespécie, porém, devia
achar indigno até fugir de um tigre-de-dente-de-sabre ou se abaixar durante um tiroteio, poucos de seus genes chegaram ao presente.
Assim, descendemos quase todos
de gente que, dotada de espinhas mais
flexíveis, passou adiante o instinto de
sobrevivência. Se bem que nos sejam
úteis, nem por isso escolhemos sábia
ou racionalmente nossos medos e sua
intensidade. A rigor, nem sequer os
escolhemos: eles nos escolhem. Fosse-me dado optar, preferiria temer bicicletas ergométricas.
Filho da grande época da exploração espacial, eu, desde os 11 anos, viajava de avião tão despreocupado
quanto um paulistano que só morou
em edifícios ao tomar o elevador. Isso
mudou 13 anos mais tarde.
Minha viagem daqui a várias capitais europeias e Nova York começou
com um voo normal rumo a Lisboa.
Quando, no entanto, pousamos, numa manhã clara de inverno, anunciaram-nos que o aeroporto ao qual chegáramos era o de Faro (no Algarve, sul
de Portugal). Ocorre que, uma vez por
ano, sobe do Tejo uma bruma que, de
tão densa, não permite aterrissagens
nem com instrumentos, exceto, talvez, com uma bengala branca. E a daquele ano coincidira (é claro) com minha chegada. Ao meio-dia embarcamos em outro aparelho e, 30 minutos
depois, sobrevoávamos (sem vê-la) a
capital lusitana.
O capitão aproveitou para nos reconfortar, informando-nos de que
aguardaríamos cerca de duas horas
pela oportunidade de pousar; havia,
aliás, outros aviões por ali, em situação idêntica, mas não nos preocupássemos, pois cada qual circulava a uma
altura diferente.
Disse também que, se o tempo não
melhorasse, tentaríamos (repito o
verbo: tentaríamos) regressar ao aeroporto de Faro e, após acrescentar
que a troca de aparelhos se devera a
problemas técnicos com o que nos
trouxera do Brasil (alguém queria saber?), ele arrematou inesquecivelmente: "E mais não posso dizer porque mais não sei".
Há um momento em certas relações quando a mulher, chegando em
casa, desculpa-se pelo atraso alegando, com naturalidade, que encontrara
tal ou qual amiga no cabeleireiro, mas
o marido, por vias acidentais e independentes, sabe que a amiga em questão está fora da cidade.
Para mim, aquele foi o momento
preciso em que minha confiança inocente nas máquinas de voar se evaporou. E, embora os voos seguintes da
viagem possam ter sido impecáveis,
comecei a notar algo de errado ou estranho em cada um deles: aqui, uma
trepidação inesperada, ali, a cara soturna de uma aeromoça ou um tom
suspeito na voz do piloto.
Passei seis anos sem voar e, quando
voltei a fazê-lo, foi não graças a terapias e à psicanálise (com seus argumentos exasperantes: "Como você
pode ter medo de morrer se nunca
morreu?"), mas lançando mão de recursos consagrados, como ansiolíticos ou álcool. Dizia-se outrora que
não há ateus nas trincheiras, e seu número decerto míngua 10 km acima do
chão, onde uma das formas que a divindade pode assumir é a líquida.
Convém lembrar que, antes de serem guilhotinados, os criminosos
franceses tinham direito a uma dose
de conhaque e a um charuto. Já os
condenados a viajar são tratados mais
impiedosamente: tabaco, nem pensar, e, na classe econômica, nada de
conhaque tampouco.
Não preciso ler estatísticas ou a literatura especializada para saber que
minha fobia é irracional, ou melhor,
menos racional do que seria evitar
carros, trens e diversos restaurantes,
para nem falar do próprio tabagismo.
Como a explico para mim mesmo?
Acostumados, há 100 mil anos, que
estamos a andar sobre a terra associando certo tempo e esforço físico a
determinada distância percorrida,
talvez nos deitarmos em São Paulo
para acordarmos em Paris soe bom
demais para ser verdade e sugira uma
trapaça espaço-temporal pela qual,
cedo ou tarde, teremos que pagar.
Talvez o que há de tudo ou nada na
maioria dos desastres aéreos nos impeça de, em nosso íntimo, negociar
com o destino penas menores que a
capital.
Seja como for, enquanto sobram
explicações, seguem faltando curas e
remédios eficazes. E mais não posso
dizer porque mais não sei.
NELSON ASCHER, 51, é poeta, ensaísta e tradutor. É autor, entre outras obras, de "Parte Alguma" (2005, Cia das
Letras).
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