São Paulo, sábado, 06 de junho de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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Você tem medo de viajar de avião?

SIM

"Porque mais não sei"

NELSON ASCHER

HOMEM QUE é homem não tem medo de nada. Como essa subespécie, porém, devia achar indigno até fugir de um tigre-de-dente-de-sabre ou se abaixar durante um tiroteio, poucos de seus genes chegaram ao presente.
Assim, descendemos quase todos de gente que, dotada de espinhas mais flexíveis, passou adiante o instinto de sobrevivência. Se bem que nos sejam úteis, nem por isso escolhemos sábia ou racionalmente nossos medos e sua intensidade. A rigor, nem sequer os escolhemos: eles nos escolhem. Fosse-me dado optar, preferiria temer bicicletas ergométricas.
Filho da grande época da exploração espacial, eu, desde os 11 anos, viajava de avião tão despreocupado quanto um paulistano que só morou em edifícios ao tomar o elevador. Isso mudou 13 anos mais tarde.
Minha viagem daqui a várias capitais europeias e Nova York começou com um voo normal rumo a Lisboa.
Quando, no entanto, pousamos, numa manhã clara de inverno, anunciaram-nos que o aeroporto ao qual chegáramos era o de Faro (no Algarve, sul de Portugal). Ocorre que, uma vez por ano, sobe do Tejo uma bruma que, de tão densa, não permite aterrissagens nem com instrumentos, exceto, talvez, com uma bengala branca. E a daquele ano coincidira (é claro) com minha chegada. Ao meio-dia embarcamos em outro aparelho e, 30 minutos depois, sobrevoávamos (sem vê-la) a capital lusitana.
O capitão aproveitou para nos reconfortar, informando-nos de que aguardaríamos cerca de duas horas pela oportunidade de pousar; havia, aliás, outros aviões por ali, em situação idêntica, mas não nos preocupássemos, pois cada qual circulava a uma altura diferente.
Disse também que, se o tempo não melhorasse, tentaríamos (repito o verbo: tentaríamos) regressar ao aeroporto de Faro e, após acrescentar que a troca de aparelhos se devera a problemas técnicos com o que nos trouxera do Brasil (alguém queria saber?), ele arrematou inesquecivelmente: "E mais não posso dizer porque mais não sei".
Há um momento em certas relações quando a mulher, chegando em casa, desculpa-se pelo atraso alegando, com naturalidade, que encontrara tal ou qual amiga no cabeleireiro, mas o marido, por vias acidentais e independentes, sabe que a amiga em questão está fora da cidade.
Para mim, aquele foi o momento preciso em que minha confiança inocente nas máquinas de voar se evaporou. E, embora os voos seguintes da viagem possam ter sido impecáveis, comecei a notar algo de errado ou estranho em cada um deles: aqui, uma trepidação inesperada, ali, a cara soturna de uma aeromoça ou um tom suspeito na voz do piloto.
Passei seis anos sem voar e, quando voltei a fazê-lo, foi não graças a terapias e à psicanálise (com seus argumentos exasperantes: "Como você pode ter medo de morrer se nunca morreu?"), mas lançando mão de recursos consagrados, como ansiolíticos ou álcool. Dizia-se outrora que não há ateus nas trincheiras, e seu número decerto míngua 10 km acima do chão, onde uma das formas que a divindade pode assumir é a líquida.
Convém lembrar que, antes de serem guilhotinados, os criminosos franceses tinham direito a uma dose de conhaque e a um charuto. Já os condenados a viajar são tratados mais impiedosamente: tabaco, nem pensar, e, na classe econômica, nada de conhaque tampouco.
Não preciso ler estatísticas ou a literatura especializada para saber que minha fobia é irracional, ou melhor, menos racional do que seria evitar carros, trens e diversos restaurantes, para nem falar do próprio tabagismo.
Como a explico para mim mesmo?
Acostumados, há 100 mil anos, que estamos a andar sobre a terra associando certo tempo e esforço físico a determinada distância percorrida, talvez nos deitarmos em São Paulo para acordarmos em Paris soe bom demais para ser verdade e sugira uma trapaça espaço-temporal pela qual, cedo ou tarde, teremos que pagar.
Talvez o que há de tudo ou nada na maioria dos desastres aéreos nos impeça de, em nosso íntimo, negociar com o destino penas menores que a capital.
Seja como for, enquanto sobram explicações, seguem faltando curas e remédios eficazes. E mais não posso dizer porque mais não sei.


NELSON ASCHER, 51, é poeta, ensaísta e tradutor. É autor, entre outras obras, de "Parte Alguma" (2005, Cia das Letras).


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