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CARLOS HEITOR CONY
A fonte do poder
RIO DE JANEIRO - Já me explicaram mil vezes o que é e como se forma o poder. Eu próprio fucei por ai,
lendo entendidos e curiosos que
trataram do assunto. Li alemães,
que são bons na matéria. Li tratadistas que pleonasticamente trataram do poder e de sua fonte.
Tanta e tamanha sapiência nunca me convenceu. A primeira noção
que tive do poder foi um canivete
que o pai jogou fora. Estava enferrujado e só tinha uma lâmina, com
a qual o pai descascava laranjas o
ano todo e as castanhas nas ceias
de Natal.
Não usava facas para isso. Ao
contrário daqueles que crucificaram Cristo, ele devia saber o que fazia. Apanhei o canivete no lixo, limpei-o, amolei sua única lâmina numa pedra cinzenta e porosa que tinha o óbvio nome de "pedra de
amolar".
Armado cavalheiro, sagrado
com aquilo que os laudos do Instituto Médico Legal chamam de "instrumento pérfuro-cortante", assumi o poder de todo o lado esquerdo
da rua em que morava.
Só não assumi o poder da rua inteira porque, no lado direito, havia
um menino que tinha um canivete
com duas lâminas. Uma delas era
maior que a outra.
Aberto, o canivete parecia um siri com duas garras metálicas. Chamava-se Agenor. Nunca tive um
amigo com esse nome -e acho que
o motivo foi esse canivete mais poderoso do que o meu. Daí estabeleci
toda a hierarquia do poder, que
perdura até hoje.
Anos depois, em Zurique, comprei um daqueles canivetes suíços
que tem 48 lâminas e outras tantas
serventias. Dizem que é a arma
principal do exército daquele país.
Ninguém briga com a Suíça com
medo de arma tão mortífera.
Nunca esqueci aquele canivete
de duas lâminas que me roubou o
poder de uma rua. Uma rua que
não mais existe, um poder que nunca tive e, pensando bem, que nunca
quis ter.
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