São Paulo, terça-feira, 06 de julho de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Voz ainda inaudível

Recebo de toda a parte a mesma indagação angustiada. Quem devemos apoiar?, perguntam-me os inconformados com nossa estratégia nacional malograda. Ainda que acreditem na viabilidade de outro rumo, não vislumbram quem possam ser seus agentes em nossa política. Hoje no Brasil, esses inconformados não são milhares; são milhões. E milhões capazes de representar a alavanca de uma reviravolta.
Não se ouve, entretanto, a voz deles. Duas outras vozes dominam a discussão.
A primeira voz se identifica com o ideário que está há muitos anos no poder. Vê o governo do PT como caudatário, embora mais inepto e envergonhado, do único caminho possível: o de aceitar a disciplina da globalização, adaptando ao Brasil as mesmas instituições que deram certo nos países ricos, preparando um Estado mais enxuto e menos gastador, fortalecendo as "redes de proteção social" que resgatariam os que penam na miséria e resolvendo os problemas de infra-estrutura e de formação de capital humano que estrangulam nosso desenvolvimento.
A segunda voz prima pela superioridade irônica. Atribui a semelhança de idéias e de práticas entre os governos de FHC e de Lula à pobreza inescapável da política contemporânea e às limitações intrínsecas do Brasil. Se esbanja ceticismo a respeito da trajetória atual, também descarta como fantasiosas as supostas saídas. E apresenta sua própria desesperança como título de sagacidade desiludida. Propõe-se a monitorar os desmandos das duas coalizões que comandam a política brasileira e a reconhecer exemplos isolados de competência e de honestidade. O país se desenvolveria aos trancos e barrancos graças à combinação da energia persistente que vem de baixo com a capacidade ocasional que vem de cima. Esperar mais do que isso seria, de acordo com esses desenganados, devaneio perigoso.
Há, porém, uma terceira voz. É a voz dos muitos que levam a sério a pregação em favor de um modelo de desenvolvimento baseado na mobilização forçada dos recursos nacionais, na democratização das oportunidades de trabalho e de ensino e na quebra dos vínculos entre o poder e dinheiro. Estes brasileiros acreditam, sim, que exista alternativa à política vigente. E constatam que todos os outros países grandes de renda média estão engajados na construção de tais alternativas. Por isso mesmo, pensam, essas outras economias crescem no sol e na chuva enquanto nós só crescemos quando o dinheiro fácil rola pelo mundo e quando nosso agronegócio se depara com novos mercados. Se acreditam, porém, haver outro rumo, não identificam quem o possa com credibilidade representar. Essa falta de agente confiável é hoje o bloqueio da política brasileira. E essa a origem da perplexidade que toma conta dos mais sérios e dos mais esperançosos.
E a solução? Persistir na crítica, na proposta, no recrutamento de quadros, na organização de forças. Essa voz ainda inaudível acabará por se fazer ouvir porque é ela que tem mensagem e autoridade. À medida que se fizer ouvir, encontrará, mesmo entre os partidos políticos existentes, os instrumentos de que precisa para disputar o poder. Ninguém pode saber se esse processo será rápido ou lento -se demorará dois anos ou 20. Exige o recurso que mais nos costuma faltar: fidelidade a uma tarefa de longo prazo. Entretanto, e apesar de tudo, essa luta já começou. Dela, só dela, podemos esperar o soerguimento do Brasil.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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