São Paulo, terça-feira, 06 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Vieira, vento e coração

JOSÉ SERRA

"O semeador é nome; o que semeia é ação. Uma coisa é o soldado e outra o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Palavras sem obras são tiros sem bala; atroam, mas não ferem."
Essas reflexões do padre Vieira me ocorreram ao analisar a recente Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE, que acompanha os gastos das famílias conforme a renda e o peso de cada item -alimentação, vestuário, educação, saúde etc.- no orçamento doméstico ao longo do tempo. São informações valiosas para quem trabalha com políticas públicas e sabe que uma decisão sua afeta a vida de milhões de pessoas.
Uma tendência observada no mundo todo é o aumento constante do peso dos gastos com assistência à saúde no orçamento familiar. No Brasil, entre 1987 e 1996, foi o que aconteceu. O dispêndio com saúde subiu de 6,29% do orçamento doméstico para 8%. Mas, na pesquisa do IBGE de 2002/03, esses gastos caíram de 8% para 5,74%. No caso das famílias com até dois salários mínimos de renda mensal, os percentuais do gasto com saúde tiveram uma evolução ainda mais interessante: 6,71% em 1987, 10,09% em 1996 e 4,20% em 2003. Ou seja, nos últimos anos da década passada e no começo da atual, a tendência se inverteu.


Até o ano passado, a oferta dos serviços públicos e gratuitos de atenção básica à saúde melhorou e se ampliou


Há uma conclusão bem plausível: até o ano passado, a oferta dos serviços públicos e gratuitos de atenção básica à saúde melhorou e se ampliou a ponto de permitir que cada vez mais famílias deixassem de pagar, ainda que esporádica e emergencialmente, por uma consulta ou um procedimento ambulatorial ou hospitalar. Nesse item, a redução do percentual de gasto do orçamento familiar foi mais significativa. Em 1987, as famílias gastavam 0,23% do orçamento doméstico com hospitalização; em 1996 esse índice baixou para 0,19%; e em 2003, para 0,06%.
Um outro dado do IBGE é especialmente satisfatório: o gasto com fumo, que equivalia a 1,31% do orçamento em 1987 e 1,23% em 1996, caiu à metade em 2003, para 0,62%. É uma prova de que nossas campanhas contra o cigarro e a briga pesada que enfrentamos com a indústria do tabaco valeram a pena. De fato, a referida pesquisa avaliza o acerto das prioridades que definimos no Ministério da Saúde durante o governo Fernando Henrique. E a primeira delas foi investir maciçamente na atenção básica à saúde, uma prioridade tão óbvia que até a sabedoria de nossas tataravós já ensinava que mais vale prevenir do que remediar.
O avanço mais relevante foi o Programa de Saúde da Família. O PSF já existia quando assumimos o ministério, em 1998, mas não era prioritário de fato no Orçamento. Mudamos essa situação e passamos a destinar mais recursos, proporcionalmente, à área da atenção básica, à medicina preventiva. Em quatro anos, multiplicamos por dez o número de equipes de saúde da família, cada uma formada por um médico, uma enfermeira, duas auxiliares de enfermagem e cinco agentes de saúde que vão regularmente às casas da população e que têm, também, um kit gratuito de medicamentos básicos. Em 1997, havia 328 equipes em todo o país, a um custo de R$ 87 milhões anuais. Em 2002, eram 16.500 equipes e R$ 1,3 bilhão por ano.
Por ser um trabalho mais pulverizado, feito em parceria do Ministério da Saúde com Estados e municípios, a atenção básica rende menos dividendos políticos. Mas era preciso fazer jus ao nome: o ministério é da saúde, não da doença. Significa cuidar mais da população para que ela adoeça menos, interne-se menos no hospital e gaste menos com remédios.
Em relação ao dispêndio com medicamentos, o Brasil tem uma característica particularmente perversa. Os pobres gastam proporcionalmente mais com remédios do que os ricos, cuja maior despesa é o plano de saúde. Por isso, reforçamos o programa da farmácia básica, que distribui remédios gratuitamente, e compramos outra briga para criar os medicamentos genéricos, mais baratos e tão eficazes quanto os de marca original. Ampliamos, também, a distribuição de medicamentos complexos. A perversidade dos dados sobre gastos com saúde revela-se no fato de que os ricos têm mais acesso aos cuidados preventivos e adoecem menos do que os pobres. Assim, uma política pública de saúde que privilegie a atenção básica e o acesso a medicamentos beneficia as camadas mais vulneráveis da sociedade.
A questão do acesso da população a procedimentos simples angustia qualquer ministro da saúde. Em 1998, por exemplo, recebi no ministério um grupo de oftalmologistas que me contaram que entre 200 mil e 250 mil cegos poderiam voltar a enxergar se tivessem acesso à cirurgia de catarata, um procedimento ambulatorial simples e rápido. Fiquei abismado e perguntei-lhes o que fazer. Eles propuseram os mutirões de cirurgias de catarata, que aceitei na hora. Em três anos foram feitas quase 740 mil operações de catarata, dobrando a média anual de 130 mil para 260 mil cirurgias. Os mutirões não apenas devolveram a visão a quem tinha catarata em estágio avançado, mas também melhoraram a área de atenção oftalmológica em todo o país, pois foi preciso equipar hospitais e treinar pessoal para os fazer.
A pesquisa do IBGE mostra, portanto, muito mais do que números. Mede resultados de políticas e ações de governo e conta um pouco sobre o dia-a-dia da população. Merece ser analisada e divulgada, ainda que precise disputar um pequeno espaço na mídia com parábolas e metáforas, tão em moda hoje em Brasília, a ponto de tornar certo noticiário quase uma paródia de Arquimedes: dêem-me um punhado de metáforas e um microfone para dizê-las e eu moverei o mundo. A vida real é mais que discurso. Segundo Vieira, "para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras".

José Serra, 62, economista, é o candidato do PSDB à Prefeitura de São Paulo. Foi senador pelo PSDB-SP (1995-2002) e ministro do Planejamento e da Saúde (governo Fernando Henrique).


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