São Paulo, terça-feira, 06 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O tiro pela culatra

JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO

Problemas complexos têm soluções simples e, quase sempre, erradas. Essa, como sabe toda gente, é uma das leis de Murphy. Acontece todo dia. Agora também, quando o Congresso não interfere na resolução do Tribunal Superior Eleitoral que reduz o número de vereadores do país. Com o TSE, vale lembrar, apenas cumprindo a Constituição, posto dever o número de vereadores ser mesmo "proporcional à população do município" (art. 29). Bom, se dirá. Mas só aparentemente. Que essa medida não vai ter conseqüência prática nenhuma.
Pior ainda, vai ser mesmo ruim para a democracia. Nesse ponto já digo, aos leitores, o que Chopin dizia a seus críticos: "Por favor, não me compreendam tão depressa". É que essa redução no número de vereadores tenderá a somente elitizar nossas Câmaras. Os pequenos partidos vão sofrer. Perde-se a diversidade política que enriquece especialmente a vida dos pequenos municípios. Com a radicalização da democracia sugerindo que melhor seria o caminho inverso. Que esse número de vereadores até aumentasse. Convertendo nossas Câmaras em grandes assembléias populares.
Claro que isso, apenas, quando já não houvesse remuneração dos vereadores. Que esse aumento no número de vereadores não nos custasse um vintém a mais. Seria mesmo natural. Vereador não recebe salário em nenhum lugar do planeta. Exercem os mandados sem abandonar suas profissões, por espírito público. Há, por toda parte, apenas Conselhos de Cidadãos -que se reúnem, periodicamente, para decidir os destinos de suas cidades. Eleitos pelo povo, claro.


Ruim não é verdadeiramente que sejam muitos os vereadores. Ruim é que eles nos custem tanto


Também era assim, no Brasil, até Geisel (EC 4/75), para cidades de menos de 100 mil habitantes. Com a ditadura, enquanto fechava o Congresso, adoçando a boca dos políticos de província. São hoje 60.311, vivendo dos cofres públicos. Sem contar o que se gasta com o funcionamento dessas Câmaras. Ruim, por isso, não é verdadeiramente que sejam muitos os vereadores. Ruim é que eles nos custem tanto.
Para ser socialmente útil, portanto, essa redução no número de vereadores deveria significar sobretudo redução no repasse dos recursos às Câmaras, decorrência natural de serem menores os custos com menos gabinetes em funcionamento. Só assim teríamos economia de fato. O problema é que a emenda constitucional nš 25, mais conhecida como Lei (Esperidião) Amin, fixa limites às receitas dessas Câmaras, proporcionais às receitas dos municípios: 8% para cidades que tenham até cem habitantes, 7% até 300; 6% até 500; 5% a partir de 500 mil habitantes. Dinheiro demais, que certamente seria socialmente mais bem aplicado em saúde, educação, habitação popular.
Enquanto não mudar a Lei Amin, pois, o dinheiro atualmente consumido com as Câmaras de Vereadores continuará sendo o mesmo -com menos vereadores, significando que vai sobrar grana para aumento nos vencimentos desses parlamentares. Ou para a criação de novos cargos de assessoria, a serem ocupados por familiares ou cabos eleitorais.
"Vai ser uma farra", assim reagiu alegremente um velho vereador recifense, depois da não-votação do Senado. Posto saber que, mantido inalterado o repasse de recurso às Câmaras, e passando a ser menos os vereadores, vai é sobrar mais dinheiro para cada um deles. "Uma farra", está bem definido. Os economistas fazem contas de uma hipotética redução de custos, por serem menos os eleitos. Os vereadores sabem que essa economia vai ser zero. E estão rindo.
Uma solução possível seria que as próprias Câmaras reduzissem o montante dos recursos que lhes seriam repassados. Uma solução tecnicamente possível. Porque a Lei Amin estabelece apenas limites. Limites que acabaram virando tetos. Nada impedindo que fixassem esses valores em montantes inferiores a ditos limites. Mas elementar dose de realismo político sugere que vereador nenhum votará redução de verbas para suas Câmaras.
Variável, portanto, será o Congresso estabelecer que os mandados dos vereadores serão gratuitos. Ou alterar a Lei Amin, reduzindo o repasse de dinheiro público às Câmaras. Até lá, tudo ficará como dantes. Essa redução de vereadores não vai significar coisa nenhuma, portanto. As aparências enganam. O que parecia vitória, na verdade, não é nada. Tudo confirmando outra lei de Murphy: "quando alguma coisa puder dar errado, ela dará sem dúvida". Deus tenha pena da democracia brasileira.

José Paulo Cavalcanti Filho, 56, advogado, é presidente do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional. Foi presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e da Empresa Brasileira de Notícias, além de secretário-geral do Ministério da Justiça (governo Sarney).


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