São Paulo, quinta-feira, 06 de julho de 2006

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Pés de barro

É de esperar que um bloco comercial, quando aceita novos sócios, tenha bases consolidadas; não é o que acontece com o Mercosul

OS NÚMEROS podem parecer eloqüentes. Com a entrada da Venezuela no Mercosul, nasce um bloco cujas economias, somadas, produzem todo ano mais de US$ 1 trilhão, exportam US$ 220 bilhões e atendem a 260 milhões de consumidores. A iniciativa associa o país que detém as maiores jazidas de energia fóssil (petróleo e gás) do subcontinente, em solo venezuelano, ao que abriga o maior e mais complexo parque industrial, o Brasil.
Há, porém, várias maneiras de, adicionando outras informações, atenuar o impacto do que foi dito no parágrafo acima -que serviria como peça de propaganda política para "vender" a nova iniciativa, mas que pouco condiz com a realidade e os horizontes atuais do Mercosul. Sozinho, o Brasil representa mais de 70% do PIB e da população do "novo" bloco e é responsável por mais da metade das exportações. A entrada da Venezuela, portanto, acrescenta pouco às dimensões simbólicas do Mercosul.
Blocos econômicos, de outro lado, não interferem na economia do petróleo, cujo mercado é autônomo e global. No gás, escaldado pela experiência boliviana, o Brasil só entrará na aventura do Grande Gasoduto do Sul (proposta de Hugo Chávez para trazer o combustível da Venezuela até a Argentina) se perder o juízo e dispuser-se a torrar dinheiro.
Tudo somado, a entrada da Venezuela não agrega ao atual consórcio grande perspectiva de desenvolvimento. Um discreto aumento do comércio inter-regional é o que se pode esperar dessa nova configuração, à medida que a economia venezuelana vá interagindo mais com as de Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.
As perspectivas ficam ainda mais restritas, porém, quando se levam em conta os problemas internos por que o Mercosul vem passando nos últimos anos, de um lado, e o potencial perturbador para as relações comerciais que a chegada de Hugo Chávez ao grupo vai despertar, do outro.
É de esperar que um bloco comercial, quando decide expandir-se e aceitar novos sócios, esteja consolidado em sua estrutura original; que tenha resolvido seus problemas básicos; que as nações associadas estejam em harmonia entre si. Nada disso reflete a situação do Mercosul atualmente. O "gigante" de US$ 1 trilhão tem os pés de barro.
Como sintoma da cacofonia, a assinatura do protocolo de adesão da Venezuela, em Caracas, deu-se no momento em que Uruguai e Paraguai ameaçam abandonar o bloco. A associação se pretende uma união aduaneira (em que os sócios se comportam como se uma nação só fossem nas negociações extrabloco), mas nem a configuração básica -de zona de livre comércio, em que os produtos entram e saem dos países sem serem gravados- funciona a contento.
A essa entidade fragilizada vem associar-se Hugo Chávez, cujo compromisso no continente não vai além da retórica "antiimperialista". Se empresas e trabalhadores brasileiros dificilmente ganharão algo relevante no processo, é certo que, de saída, o Itamaraty ganha mais uma dor de cabeça diplomática.


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