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São Paulo, quarta-feira, 06 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O governo Lula e os novos especialistas

TARSO GENRO

Hoje estamos presenciando o surgimento de uma nova safra de intelectuais, que escolheu promover uma nova especialidade no campo da teoria política: mostrar que o PT e seus líderes não são mais os mesmos, em termos políticos e ideológicos. E que o partido renunciou a determinadas formulações doutrinárias que caracterizavam o seu passado recente. Dedicam-se a mostrar, esses intelectuais, o óbvio; mas quem quer mostrar o óbvio de maneira insistente quer sempre mostrar mais do que o óbvio: ou que eles sempre tiveram razão, ou que quem muda viola as normas éticas da boa política.
Não me refiro aqui, certamente, aos que navegam em busca de saídas sérias e viáveis para nos livrar da pesada e desastrosa herança financeira que recebemos do governo anterior, por mais duras que sejam as suas críticas. Refiro-me àqueles -quase todos ex-comunistas ou "radicais" na sua juventude, ou mesmo na maturidade- que transitaram para o neoliberalismo no período recente e, portanto, mudaram não os seus projetos, mas mudaram de lado na maré neoliberal e agora se apresentam como corregedores da moral da esquerda.
Ora, as grandes transformações econômicas que ocorreram nas últimas décadas, com base nas novas tecnologias, novas formas de organização do trabalho, novas formas de cooperação entre empresas e entre elas e seus prestadores, forjaram novas condições materiais e culturais de existência. Diversificaram-se as subjetividades sociais e promoveram-se novas socialidades -outra sociedade, outras posturas individuais e outras relações coletivas. Tudo dentro de um contexto de fracasso absoluto dos projetos marxistas dogmáticos, que influenciavam enormemente as análises do PT, embora jamais fôssemos um partido estatutariamente marxista.
Esses projetos, originariamente libertários, fundavam-se, graças a uma versão positivista-naturalista do marxismo, numa visão simplória da sociedade e do ser humano. O proletariado seria uma "vítima" quase pura dos engendramentos opressivos do capital, e sua bondade implícita seria liberada pelo ato da revolução, independentemente das instituições do Estado que fossem forjadas. Tudo estava amparado numa olímpica ignorância das teorias do direito e do Estado (e da filosofia do direito moderno), para não falar na simplificação economicista que orientava o início de uma nova economia socialista, que estaria fundamentada na "expropriação dos expropriadores".


O incrível não é quem muda e busca novos caminhos, mas é quem não muda as suas posições neoliberais


Tudo ficou provado em sentido inverso, pois o impedimento político (ausência de democracia política) transformou os representantes do proletariado não somente em algozes da classe operária, mas também de toda a sociedade que não compartilhasse, pelo silêncio ou pela cumplicidade, da sua visão linear do mundo e da história.
As mudanças no PT, independentemente das suas gradações no interior das nossas correntes internas, estão relacionadas com esse cenário histórico. O incrível não são as nossas mudanças, que sintetizam hoje a unidade do nosso partido num patamar bem menos ambicioso, mas mais realista e exequível: forjar um outro modelo de desenvolvimento, com inclusão social, emprego e distribuição de renda. Fazer a verdadeira construção democrática, renovando a democracia e forjando, dentro dela, a idéia de nação. Lutar para construir um Estado moderno e participativo, num cenário mundial que é adverso a tudo o que cheira a igualdade e justiça.
O incrível, e de pasmar, não é quem muda e busca novos caminhos, mas é quem não muda as suas posições neoliberais -ou mesmo quaisquer posições supostamente "de esquerda", já derrotadas pela história- mediante os dois fracassos brutais dos últimos anos: o fracasso daquele socialismo cuja construção é baseada na força arbitrária e coercitiva do Estado, subordinado ao corporativismo e ao messianismo classista, e o fracasso do projeto econômico, do modo de vida e da visão restritiva da democracia, originária da experiência neoliberal, que não adaptou, mas procurou extinguir as importantes conquistas sociais das lutas democráticas, socialistas e social-democráticas da modernidade madura.
Não se enganem os oposicionistas ao governo Lula, que disputam legitimamente uma outra variante programática democrática que não é a nossa. Ao se encantarem com o oposicionismo esquerdista e corporativo, ou com o oposicionismo neoliberal da ex-esquerda (que construiu a crise que aí está), estão dando força às duas possibilidades de atraso neste início de século: aquela que brande os privilégios como direitos, e tenta fazer disso uma "grife revolucionária", e aquela que prega a extinção indireta da política, pela supremacia absoluta do mercado, e faz da sua suposta coerência um moralismo intolerante e sectário.

Tarso Genro, 56, advogado, é ministro da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República.


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